Quando Nietzsche chorou
Psicanalista, Filósofo, Teólogo, Escritor e Professor Universitário da UNICAMP
Palestra realizada em Campinas, no Grupo Cinema e Psicanálise
Antes de tudo, meu muito obrigado pelo convite que me foi feito pelo“Grupo de Estudos Cinema e Psicanálise”, para lhes falar sobre o filme de Pinchas Ferry, baseado no livro de Irvin Yalon, “Quando Nietzsche chorou”.
INTRODUÇÃO: Escrevi um texto como INTRODUÇÃO, e é possível que o tenham recebido, e já lido. No entanto, ele foi escrito apenas a título de motivação. E como costumo fazer, tanto nas aulas como nos encontros, vou pedir-lhes que me interrompam sempre que quiserem, mesmo durante minha exposição. Não vamos esperar o final para abrir a discussão.
Isto também é psicanalítico... e muito didático. Até porque trata-se de um discurso-vivo, em que não vou falar sozinho. Eu falo com vocês, e, namedida do possível, vamos manter uma interlocução o tempo todo;numa interlocução que, de certa forma, começou antes mesmo de hoje.
Ontem eu estava em Belo Horizonte, na Faculdade de Medicina, e me permiti fazer uma prévia do que vou dizer agora. Introduzi a questão do Nietzsche, e foi muito interessante porque, finalmente, o texto de lá ficou completamente diferente do daqui.
Esta é uma precaução que estou tomando, mas também uma estratégia,no sentido de mantermos a “liberdade de associação”, com criatividade e espírito crítico. E como estamos gravando, provavelmente transformaremos tudo isso num texto escrito a ser enviado a vocês, para continuarmos dialogando mesmo depois do encontro de hoje.
Aliás, vou contar uma coisa que pode tornar-se bastante significativa no início de nossa conversa sobre Nietzsche: gravei o som do filme, neste gravador, e fui daqui a Belo Horizonte ouvindo o filme. Isso já me permite fazer uma pequena observação: o que mesmo é um filme?
Numa linguagem mais técnica e psicanalítica, posso lembrar, de acordo com Lacan, que “o sonho é uma peça de teatro na cena do Inconsciente”. E o cinema? Um sonho na tela!
Isso tem uma consequência maior, no sentido da criatividade do cineasta, com a possibilidade de trabalhar o tema da maneira como quiser. E ao falar assim, vou fazer um primeiro comentário: “Quando Nietszche chorou”, na realidade é um texto escrito. E nós estamos, inicialmente, na área da “escritura”, ou, se quiserem falar em termos de literatura, estamos lendo uma história romanceada.
Isso permitiu que Irvin Yalon desse a versão dele. E eu quero dizer, principalmente em atenção ao Mauro e ao Geraldino, que a versão do Irvin não é necessariamente um documento histórico.
Por favor, entendam isto,porque pelo menos algumas coisas que vamos dizer, mais provavelmente, não correspondem à verdade histórica. Daqui a pouco, vou pedir à Sonia que me dê uma ajuda, do ponto de vista histórico, mostrando“o que aconteceu ... e o que não aconteceu”.
No entanto, isso não diminui em nada o aspecto “formal” – do ponto de vista artístico. Vou,portanto, considerar o livro do Irvin como um trabalho artístico... deliteratura; mais ainda,um trabalho transformado em arte visual no cinema.
O que estou querendo dizer? Que,com isso, nossa escuta e nossa visão do filme vão permitir, a nós psicanalistas-espectadores, manter a atitude de intérpretes do que vemos e ouvimos. E eu acrescento: o que vou dizer- lhes é minha interpretação a partir de minha escuta, reconhecendo que pode haver vários outros pontos de vista, a começar pelo do Irvin... a respeito do Nietzsche. Vários pontos de vista, eventualmente discordantes. Mas não importa, pois é mais um sinal da riqueza do tema!
Aliás, esta é mais uma importante contribuição de André Green... igualmente citado em meu texto ... a propósito de Lacan ensinando que “ o Inconsciente estrutura-se como linguagem”. André Green acrescenta que se trata de uma linguagem VIVA. Portanto, nós também vamos trabalhar com a VIDA DO DISCURSO, de Nietzsche, de Irvin, de Pinchas Ferry. Algum comentário sobre essa rápida Introdução?
PARÁGRAFO PRIMEIRO:Vou começar agora valorizando o convite que vocês nos fizeram. Gostei muito, até porque,dessa forma,vocês criaram o clima necessário para conversarmos. Vejam aqui:
“Nosso objetivo é comparar cinema e psicanálise, que, como explica Christian Duncan, são duas hermenêuticas críticas da subjetividade... constituídas por processos de desconstrução, desalienação, posicionamento do sujeito e do desejo, em face de seus sistemas sociais”.
Faço minha esta proposta, de maneira muito participativa. Estou cada vez mais interessado no diálogo com os “meios sociais de comunicação”. Alguns aqui já me ouviram falar sobre isso, num curso sobre “A psicanálise da experiência sócio-cultural”.
O diálogo da psicanálise com o cinema se abre, e nós vamos poder ir mais longe, com ZigmuntBauman, ao falar de um mundo líquido e de um amor líquidonuma sociedade inconsistente...em que corremos o risco de perder nossa identidade.
A metáfora do líquidoe do liquidificador é bastante clara: você põe banana, goiaba, laranja, manga... eao ligar o liquidificador, tudo fica misturado, com perda da consistência!
É exatamente neste sentido que o próprio Bauman publicou seu livro sobre “O malestar na civilização pós moderna”. Qual o mal estar hoje? Uma inevitável perda da identidade! Isso vai tão longe que podemos pensar no próprio Nietzsche com fantasias suicidas.
Essa crítica feita por Bauman é retomada por Slavoj Zizec, em seu texto sobre “O absoluto frágil”. Será que uma característica do mundo atual, numa atitude contrária ao dogmatismo,não seria a perda do “definido”? Por outro lado, qual seria o aspecto positivo do contrário do absoluto? É Einstein que responde com a teoria da relatividade generalizada.
Por um lado o líquido, com a perda da consistência; por outro “o absoluto frágil”, com a identidade enfraquecida; e, finalmente,a grande intuição de Einstein a respeito da “relatividade generalizada”.
Pois bem, tudo isso, dá-nos um contexto, dentro do qual a psicanálise vai tendo algumas grandes intuições: seja da parte do próprio Freud,seja da parte de Lacan e Bion.
Vocês sabem que Freud faleceu em 39... e de 39 para cá, muita coisa aconteceu, também na história da psicanálise. E como Breuer trabalhou junto com Freud, eu vou fazer uma distinção entre o jovem Freud e o velho Freud.
É muito delicado o que estou dizendo, mas tenho certeza de que o Mauro e o Geraldino vão me apoiar...O próprio Freud, no final... escreveu alguns textos questionando o que veio antes e poderia vir depois.
O que veio antes era relativamente tranquilo para ele. Mas, o “Mal estar na civilização” manifesta a inquietação de Freud, que estava se sentindo mal nesta “civilização”. E, daqui a pouco,vou explicitar o motivo do mal estar no caso de Freud: “era o sentimento de culpa”.
Mas eu falei também da relatividade a partir de Einstein. E os psicanalistas acabaram aproveitando tudo isso, a começar por Lacan e Bion, usando a intuição de Einstein na própria definição de personalidade, nos seguintes termos:
“A personalidade é uma estrutura de relações marcantes, de natureza emocional-afetiva, que desde o início a caracterizam, distinguindo-a de outras personalidades assim igualmente constituídas”.
Vejam bem o que estou querendo dizer, com Bion, depois de Freud:“o Ego não é apenas um indivíduo separado”. Indo além de Lacan... que, a propósito do corte do cordão umbilical, falava de uma “separação individualizante”. Ora, a noção de indivíduo não deve ser identificada à de personalidade. O “indivíduo”... vocês sabem que estudei teologia, e naquele tempo a gente estudava latim. Ora, em latim, o indivíduo era definido como: “indivisum in se, et divisumabaliis”. Não dividido em si mesmo, mas dividido (isto é separado)dos outros.
Na psicanálise de hoje, é importantíssimo não confundirmos “indivíduo” e “personalidade”,exatamente porque a personalidade é uma estrutura de relações.
Vou fazer um jogo de palavras extremamente simples: neste exato momento, estou aqui, entrando em relação com cada um de vocês. E a relação daqui-prá-lá tem uma característica pessoal minha. Mas a relação do lado de vocês (de lá-prá-cá),do lado da Isabel, do lado da Mani, do lado do Mauro... tem as características de cada um de vocês.
O que estou fazendo? Estou preparando o que vou dizer sobre Nietzsche... que se sentiu “isolado...”. Um de seus problemas mais sérios foi o problema do relacionamento!
Por outro lado, no final do texto de vocês, há mais uma passagem importante:
“Poeticamente falando... o cinema cria uma atmosfera mítica, na qual o tempo já não é CHRONOS que tudo devora; mas KAIROS com sua janela sempre aberta a novas possibilidades”.(E eu me permito sugerir mais um adjetivo: aberta a possibilidades infinitas ... ou pelo menos inesgotáveis).
Haveria aqui uma série de outros comentários, mas vou deixar para depois... Agora vou passar para a página 5 do texto que lhes enviei, com o tema da “Transferência e Contratransferência”.
PARÁGRAFO SEGUNDO: Qual o grande problema de Nietzsche? Vamos imaginar que estamos na sala de cinema e começa o filme. Qual a primeira cena? Breuer com Lou André Salomé. Ela procurando Breuer e lhe propondo que cuidasse de Nietzsche. E Breuer pergunta: “Mas quem é este Sr. Nietzsche”?
Lou André Salomé, com todo entusiasmo, diz que é “um grande filósofo” que está tendo um papel importantíssimo “aqui entre nós”. O irmão dela frequentava as aulas de Nietzsche.
Logo depois, a outra cena é do Nietzsche dando aula. E assim, nós temos uma primeira amostra de um Nietzsche cuja voz é forte... é rápida... é sonora... mas é também agressiva. Não é uma voz tranquila.
E, de repente, ele declara, por um lado, como ponto central de sua argumentação, e,por outro,como início de seu sofrimento: ...a MORTE DE DEUS!
E eu quero, desde logo, chamar a atenção para um aspecto da conversa de Nietzsche com Lou André Salomé. Quando o filósofo diz que “Deus morreu”, ela pergunta: “Ele morreu... ou nunca existiu?” É muito diferente! Se morreu... ele existia! Daí a diferença, entre aspas, entre o ateísmo e aatitude de Nietzsche. À pergunta da Lou Salomé,Nietzsche dá uma resposta em sua própria fala: “Nós o matamos”.
E Freud refere-se a uma outra visão da história...com a discussão que há entre evolucionismo e criacionismo... uma questão mal colocada pelo menos em relação ao Criador. Ela é colocada mais pelos biólogos do que pelos filósofos... exatamente porque... levando em conta a distinção entre CHRONOS e KAIROS, para Deus tanto faz... criar de uma vez ou criar no tempo. Os evolucionistas não entenderam que há uma diferença entre o tempo e a eternidade. A criação no tempo pode perfeitamente ser evolucionista.
No criacionismo, a relação é outra: uma relação entre o Criador e a Criatura. Dito de outra forma: o que é a criação? Um ato do Criador, eterno, fazendo com que o que não existia começasse a existir no tempo.
Por favor: estou tomando alguns cuidados, inclusive na maneira de falar, para não haver equívocos, principalmente em relação a Nietzsche. Qualseu verdadeiro problema? Não é tanto a negação de Deus... mas a negação de nosso conhecimento de Deus.
Freud cita Darwin e a evolução, e acrescenta, digamos assim, que, num determinado momento de nossa evolução... nós já existíamos, e não precisávamos mais de Deus. Assim também começa o problema de Nietzsche. Por isso, quero valorizar o “tempo” atual.
Este livrinho do Luc Ferry e... Gervagnon... tem por título “AtentaçãodoCristianismo”. Livro muito sério... mas que gosto de apresentar de maneira didática, da seguinte forma: “O que é mesmo a fé?... E o que são os costumes?”... Uma coisa é a fé... outra coisa os costumes. Qual a tentação do cristianismo? De confundir “fé” e “instituição”.
Outro título apresentado com relativa frequência fala-nosdo cristianismo como religião de estado! E a gente pode ver isso inclusive de um ponto de vista turístico. Sonia e eu fizemos um cruzeiro pelo Mediterrâneo. E eu fiz fotos que estão lá na minha capelinha (da Eleonora). A primeira foto é das Pirâmides do Egito. A segunda, uma foto da Arca da Aliança, tal como conservada ainda hoje em Jerusalém. Em seguida uma foto da Acrópole em Atenas. E a foto seguinte é do Arco de Constantino, primeiro imperador cristão, em Roma, ao lado do Coliseu. A outra foto é da Torre de Belém, em Lisboa, de onde partiram os navegadores... E a última foto é a do Cristo do Corcovado. “Das Pirâmides do Egito, ao Cristo do Corcovado no Rio”!
Mas a etapa romana, com o Arco de Constantino ao lado do Coliseu... é das mais importantes. Por que? Porque Constantino foi o primeiro imperador cristão! E a partir desse momento... a tentação do cristianismo... foi tornar-se a religião do Império Romano. E há um verso de Camões (nos Luzíadas) que eu sempre cito, a respeito dos navegadores que vieram por aí afora: “Dilatando a fé e o império”.
Vou resumir muito, ainda de maneira turística. Quando Sonia e eu visitamos a cidade do México, o guia turístico mostrou-nos a catedral, com a seguinte frase: “Esta catedral foi construída em cima do palácio dos Astecas”. É a “fé dilatando o império”!!! Os navegadores, a serviço do império, usavam a fé como instrumento de conquista.
PARÁGRAFO-TERCEIRO: Agora a pergunta: Qual o Deus que Nietzsche negou? Foi o deus dos navegadores? Foi o deus dos conquistadores? Foi o deus do Império Romano?
Atenção! Ao dizer esta frase, estou levantando um assunto extremamente delicado. Qual a grande crítica de Lutero... a Roma? Finalmente foi esta. A fé se romanizou... e a Igreja romana deixou de ser “católica”, isto é universal. Lutero também denunciou este perigo. Este assunto tornou-se extremamente delicado no diálogo entre “católicos” e “evangélicos”.
A partir de Nietzsche, somos levados a um diálogo mais sério, eu diria, com todos os outros setores de nossa cultura, mas em especial com a história da religião.
Geraldino: o livro de Nietzsche foi traduzido para o português como “Anti-Cristo”. Erraram na tradução: não é anti-cristo, mas anti-cristianismo.
R – Muito boa a observação do Geraldino, porque, uma coisa é a “doutrina”, outra coisa a “organização religiosa”. Uma coisa os “rituais”... outra coisa a pessoa: a pessoa de Jesus Cristo, mas também as três pessoas da Trindade!
Sonia – Voltando ao filme, acho importante lembrar que Irvin Yalon é judeu. Ele é autor, e este é um filme de autor. Ele vai selecionar do Nietzsche o que lhe interessa. Ele pôs em destaque algumas coisas... mas não está interessado em outras. Ele é um psicoterapeuta... efaz uma ficção sobre Breuer e Nietzsche...identificando-se com um ou outro pelo menos em parte. Com Breuer, em parte; e com Nietzsche em parte. São dois “alter ego”.
Por outro lado. Ele identifica Lou André Salomé com Ana O. (Nós, mulheres, somos brindadas com os lugares mais clássicos em que a psicanálise coloca as mulheres: sedutoras, etc). Acho interessante lembrar que tem uma passagem em que eles estão comemorando uma cerimônia...
R – Atenção: nós vamos chegar lá. Por enquanto,estamos assistindo à aula do Nietzsche. Qual o “deus” que nós matamos?
Aliás, há um gesto do Nietzsche nesse momento, em que ele bate a mão na cabeça, como se dissesse: “Eu matei deus dentro de mim, na minha cabeça! Na minha cabeça deus morreu”!
Atenção: e desculpem minha identificação projetiva. Como sou professor, eu fiquei imaginando Nietzsche dando aula. E há um aspecto extremamente desagradável: naquele contexto, havia pouquíssimos alunos! Uma freira, um padre, Lou André...apenas!
E eu pensei:um professor tão importante, com tão poucos alunos na sala de aula?! E minha resposta foi a seguinte: “Ele não estava falando para aquele público apenas, mas para todo o mundo”! Noutras palavras: seus interlocutores não eram apenas os ouvintes presentes. Ele estava falando para todo mundo.
P – E a freira saiu...
R – Muito boa a lembrança: nem todo mundo tinha condição de ouvir, e dialogar. A Lou André Salomé teve...
Nietzsche falou de tal maneira que, quem tinha uma postura mais definida (a freira, o padre) foi embora. Eles não aceitaram o diálogo. A Lou aceitou... mas, em que termos emocionais e afetivos?
Antes de prosseguir, vou logo dizer as consequências para Nietzsche: o Deus que morreu, foi o deus de Nietzsche!
Ao dizer isso, estou citando o livro de Valdemar Falcão, com o título “O Deusdecadaum”. Não é um livro pretencioso, querendo explicar tudo! Mas ele faz um primeiro levantamento a respeito do “deus de cada um”. E por que isso é importante? Porque corresponde à realidade. Seja lá qual for a doutrina que nos foi ensinada, a maneira como a acolhemos é sempre nossa! Este é um detalhe importantíssimo: uma coisa é o Evangelho, outra coisa minha leitura do Evangelho.
Ao lado de minha poltrona lá no consultório eu tenho um exemplar da Constituição Brasileira, e um exemplar do Evangelho. Com relativa frequência eu pergunto a meus pacientes se conhecem a Constituição Brasileira. São raríssimos os que a consultam! Por outro lado, muitos há que não fazem uma leitura pessoal do Evangelho.
Oque estou querendo dizer com isso? Que Nietzsche matou o deus dele... dentro dele! Quero valorizar muito esta expressão: o deus de cada um! E quais foram as consequências para o próprio Nietzsche?
PARÁGRAFO QUARTO: O que vou dizer agora é numa perspectiva freudiana, principalmente em Mal Estar na Civilização. E eu distingo o jovem Freud, companheiro de Breuer, e o velho Freud. Neste livro (Mal Estar na Civilização) um dos capítulos mais importantes é sobre o “sentimento de culpa”. E há uma dupla interpretação para essa culpa: a primeira sendo edípica em que o filho mata o pai, assim como Nietzsche mata Deus.
Com sentimento de culpa, o que acontece? Nietzsche fica doente! Quando Lou André Salomé procura Breuer para cuidar de Nietzsche, é porque Nietzsche estava doente!
E quais os sinais dessa doença? O primeiro... o sentimento de culpa... manifesto primeiramente na experiência da SOLIDÃO.
Vou enumerar e em seguida comentar as consequências do “crime” cometido por Nietzsche: ele se sentiu culpado, ficou sozinho, desamparado, no desespero, revoltado, pensando em suicídio. Tudo isso com sinais físicos:dor de cabeça e outros transtornos no corpo. Resumindo muito: ele ficou doente na mente e no corpo!
Mas eu gostaria de comentar mais devagar esta sequência da solidão e do desamparo. Sem Deus, Nietzsche sentiu-se só! E há uma frase que aprendi com minha analista. “Antes só que... mal acompanhado... por si mesmo”, com maus objetos internos!
Ao contrário, a solidão dos místicos valoriza os bons objetos internos. Por exemplo, os beneditinos têm o seguinte lema “O beatasolitudo, o sola beatitudo”. “Oh solidão feliz, única felicidade!” (cf. São Bernardo de Clairveaux). É a “beata solidão” dos “monges”... Ora, a palavra monge em português vem do latim “monacus” e do grego “monos” com o sentido de sozinho. A solidão dos místicos,tem como correlato a PRESENÇA DE DEUS. Não é uma “solidão” sem ninguém, mas ricamente habitada por Deus.
Ora, Nietzsche, sem deus, ficou só, mal acompanhado por seus maus objetos internos. Por isso também, logo em seguida... aparece Salomé. Nietzsche procurou uma companheira... que não correspondeu, até porque havia mais um concorrente, Paul Ree. Uma trindade amorosa... impossível de fato.
E podemos prosseguir: Nietzsche,sentindo-se só, ficou desamparado! O desamparo é um dos sofrimentos psíquicos mais delicados. E por isso mesmo nós sempre falamos de solidão... e desamparo!
A tal ponto que, em consequência, ele não apenas entrou em desespero... mas num desespero inevitável. Solidão, desamparo, desespero! “Não posso contar com ninguém”! Por isso o sentimento de revolta. Não apenas um sofrimento “negativo”, mas um sofrimento agressivo declarando guerra, contra todos.
Inclusive contra Deus, e contra si mesmo. Ele já tinha matado Deus e agora estava pensando em se matar. Era a revolta e a punição, na apropriação da culpa por meio do castigo. “Quem matou, vai ser morto!” O suicídio aparece ao mesmo tempo como “solução” e como punição, do “crime” cometido. Donde as inevitáveis fantasias suicidas!
Atenção: não sei se vocês já encontraram no consultório algum caso de fantasia suicida... Eu já encontrei. É muito delicado... até porque... vejam o paradoxo: o suicídio pode aparecer não apenas em termos de culpa, mas como reparação e redenção. Eu errei, me puno, e pago a conta! É o suicídio expiatório, comoauto redenção.
PARÁGRAFO QUINTO: Com isso, eu encerro“nosso primeiro encontro com Nietzsche”, a partir da sala de aula, e de suas consequências.
P – A Lou Salomé diz também a seguinte frase: Se Deus morreu, então não há mais moral!
R – Atenção: isto seja dito não só pela sequência do filme, mas pela lógica do raciocínio.Qual o fundamento da ética? Esta é uma pergunta extremamente delicada. Geraldino e eu fizemos teologia e aprendemos, no capítulo da teologia moral, que o fundamento da ética é o BEM SUPREMO. Por isso mesmo, levando em conta a morte de Deus, Nietzsche passa a falar de uma ética baseada não tanto no Bem Supremo, mas no respeito à condição humana do sujeito humano: demasiadamente humano!
Com esta frase, nós entramos no cerne da questão nietzschiana: humano sim, demasiadamente humano, talvez não!
Qual a pergunta que nos vai sendo feita aos poucos? O que é mesmo o humano? Como é mesmo o “ser humano”? O que é mesmo comportarmo-nos como humanos? E adiantando muito... lá na frente vou citar Sartre, ensinando que também “o existencialismo é um humanismo”.
Aliás, Sartre começa com uma primeira provocação, mais ou menos assim: “Geraldino, você não é Deus, e a culpa é sua”. Mas, logo em seguida, ele nos tranquiliza: “Você não é deus, e não há nenhuma culpa nisto!” Não há nenhuma culpa em não sermos deuses, sendo apenas humanos. Donde o título da obra de Sartre: “O existencialismo é um humanismo”
Desse ponto de vista, Nietzsche é um precursor de Sartre, e Sartre um prolongamento de Nietzsche. O existencialismo discute Nietzsche, estabelecendo uma continuidade entre a problemática de Nietzsche e a de Sartre.
No entanto, é indispensável valorizarmos de novo o contexto sócio cultural: muitos há que, ao assistirem ao filme sobre Nietzsche, nem sequer se lembram de Sartre, ou reconhecem o alcance maior doexistencialismo!
P – Não conhecem Nietzsche nem Lou André Salomé!
R – E nem por isso o assunto deixa de ser bem colocado pelo filme! Quero valorizar agora a seguinte situação: embora nem todo mundo entenda qual é o problema... o problema não deixa de existir! Embora nem todo mundo entenda os termos do problema... nem por isso o problema deixa de ser um verdadeiro questionamento.
PARÁGRAFO SEXTO: Por isso mesmo vamos mudar de parágrafo: Nietzsche começou seu tratamento com Breuer.
Demorou um pouco... com uma sequência de hesitações, de ambos os lados, mas chegou a hora em que, de fato, se encontraram. Vou chamar esse parágrafo de “transferência e contratransferência”.
O que aconteceu num primeiro momento? Breuer estava hesitante, a começar pelo fato de não ter acreditado muito na Lou André Salomé quando ela lhe disse que se tratava de um “professor emérito”.Breuer simplesmente perguntou: “Mas como saber disso?”
Como resposta, Lou Salomé levou para o Breuer dois volumes de Nietzsche, e espontaneamente se referiu a “nós dois”. E Breuer corrigiu: “Nós não, ... é só você. Você é que está querendo ajudar o Nietzsche”. Mas, no final, de fato, os dois estavam ajudando-o.
Tudo começou com aquele primeiro contato em que Nietzsche resistiu à proposta. Ele não queria... e começou de maneira especialmente agressiva. (E eu quero valorizar este aspecto da agressividade... que na nossa linguagem psicanalítica corresponde à resistência).
No entanto, a resistência pode ser passiva (não sai do lugar) ou ativa (e a pessoa ataca). E como, além do mais, Nietzsche era uma pessoa inteligente, de certa forma, desde o início ele inverteu a relação: “Você está querendo me ajudar? Mas que condições você tem para me ajudar?!”
Era uma desconfiança mútua. Mas Breuer, sendo muito hábil na maneira de conduzir a conversa... conseguiu finalmente aceitar o desafio. E as primeiras conversas de ambos são muito significativas na trama do filme:de início, uma atitude crítica de ambos os lados: Nietzsche criticando Breuer, e Breuer criticando Nietzsche.
No entanto, mesmo esta ambiguidade ainda nos faz indagar: em quemedida um bom filósofo pode fazer melhores interpretações que um simples analista? E eu vou um pouco mais longe, citando Kant, e seus grandes livros: Crítica da razão pura,Crítica da razão prática, Crítica do entendimento. Ora, um dos sentidos da palavra “análise” é “crítica”, não tanto uma crítica destrutiva, mas uma crítica construtiva (e Jacques Derrida fala de um discernimento crítico).
Neste sentido, Nietzsche criticava Breuer, que, por sua vez criticavaNietzsche. Só que, aos poucos, essa crítica (de violenta que era) foi se tornando cada vez mais inteligente! “O que mesmo você está querendo dizer”? Perguntava Breuer a Nietzsche. E em outras circunstâncias era Nietzsche que perguntava a Breuer: “O que mesmo você está querendo dizer?”.
E à medida que a conversa ia progredindo... eles se aproximavam, deixando de usar o apelativo: Senhor Professor! Senhor Doutor! (Herr Professor, e Herr Doctor).
Aos poucos, foram deixando de lado o aspecto formal... até chegarem ao ponto de se chamarem de “você”, e Breuer perguntar qual o apelido de Nietzsche. Seria Fred?
Transferência e contratransferência vão se mostrando progressivamente mais intensas, a ponto de se criar uma intimidade entre ambos. Uma intimidade progressivamente mais tranquila, em que, de repente, Breuer conseguiu ajudar Nietzsche a entender seu sofrimento, mas também Nietzsche ajudou Breuer a ser mais claro e ...como dizer? Mais assertivo!
Por que hesitei? Porque eu ia dizer “mais verdadeiro”. Só que a verdade vai mesmo aparecer somente no fim. Quando? “Quando Nietzsche chorou”. Este é o momento da verdade da situação. E eu vou mostrar por que caminhos eles chegaram até lá.
PARÁGRAFO SÉTIMO: Houve de início um questionamento da competência de Breuer por parte de Nietzsche. Em que sentido?
É um aspecto extremamente delicado, mas importantíssimo, uma vez que Nietzsche acabou dizendo mais ou menos o seguinte: “Oh Breuer, você é médico! Eu estou precisando ser curado da cabeça. Você cuida da histeria da Berta... mas será capaz de cuidar da minha cabeça”?
E é neste exato momento que na “transferência do problema”... Breuer também começou a ter “problemas de cabeça”! O questionamento do Nietzsche foi tão importante, que Breuer começoua se analisar... primeiro, em autoanálise... e em seguida numa análise com Freud.
Isso é tão verdade que chegamos a admitir que os personagens centrais (do livro e do filme) tanto podem ser Nietzsche e Salomé, como Breuer, Berta e Mathilde.
Aliás... há uma cena final... que do ponto de vista estrutural pode ser mencionado desde agora: a cena de Breuer com Mathilde... precedida de duas cenas importantes mostrando o relacionamento dele com os filhos.
Não vou adiantar... deixando para comentar a cena final... no fim de minha exposição.
Por enquanto, quero valorizar nossa própria experiência com nossos pacientes. Aos poucos vai havendo um conhecimento mútuo... Na primeira sessão de análise, nós sabemos muito pouco sobre nosso paciente... até porque, na primeira sessão ele traz tudo de uma vez. E não dá para a gente “ver” tudo de uma vez, e até leva um susto. “Nossa... quanta coisa!”
Por isso também eu me permito dar uma informação do ponto de vista etimológico: a palavra análise vem do verbo grego “ana-lyo”. Lyo com o sentido de separar o que estava misturado. E quando falo para os médicos, eu gosto de dar o exemplo de um “laboratório de análise”. Você pega o material e vai separando: isso prá cá, isso prá lá... E o importante é não confundir uma coisa com outra.
Ora, no caso da primeira sessão, vem tudo junto. E aos poucos a dupla começa a separar... isso prá lá... isso prá cá... isso é mais importante... isso menos importante ... levando em conta o investimento... No caso de Freud, o investimento libidinal; no caso do Bion e Melanie Klein,o investimento emocional-afetivo. Onde e quando você põe mais afeto? Quando é que você fica mais “afetado” por este assunto. O que mexe mais com você?
No relacionamento de Breuer com Nietzsche, isso vai acontecendo dos dois lados. Mas, num dado momento, o peso fica maior do lado do Breuer; noutro momento do lado de Nietzsche. Em que sentido?
É muito delicado o que vou dizer agora, porque então aparecem as duas mulheres: no caso do Nietzsche, a Lou André Salomé, no caso de Breuer, a Berta.
E agora podemos ver melhor o papel ativo de Nietzsche como “analista” de Breuer. Quando Breuer se refere aBerta, Nietzsche pergunta: “Mas o que mesmo ela significa para você”?
Algumas cenas do filmesão geniais, do ponto de vista artístico, mas também de um ponto de vista enigmático. Ou melhor... é como no jogo de xadrez, quando você põe a pedra no lugar certo. Qual o grande exemplo?
A mãe de Berta era amiga da família de Breuer. E há a cena de uma refeição, em que eles recebem Berta e sua mãe. Durante a refeição,Berta tem uma crise histérica...
Atenção, pois agora vou levantar uma questão a respeito do cinema e da história. Será que isto aconteceu mesmo? Em todo caso, para nós que estamos assistindo... faz muito sentido. Há uma hora em que o “escondido” vem à tona e o recalcado aparece! A fantasia histérica de Berta vem à tona de maneira... extremamente desagradável.
Durante a refeição ela começa: “Ai, ai... estou grávida...”. E quando Mathilde olha mais atentamente, ela acrescenta: “Vou ter um filho do seu marido”. Imaginando a situação em outros termos, podemos perguntar: “Podia haver ataque mais direto à qualidade do vínculo matrimonial deBreuer com Mathilde”?Em casa, na família, a “amante” revela o segredo do marido infiel!
Minha pergunta é a seguinte: isto é sonho do Breuer, é sonho do Nietzsche, é fantasia da Berta, é realidade? Eu diria: não importa! O que interessa é o que aconteceu “na mente” de todos. E o que aconteceu na mente de todos? Breuer... que estava no alto do pedestal... caiu... perante a família e perante ele mesmo.
Com esse aspecto, vamos dizer sádico, da parte de Berta, a relação de Breuer com ela fica extremamente delicada. E eu vou lembrar aquela passagem em que Nietzsche sugere a Breuer de chamar a Berta de um nome feio! Breuer a xinga, e vai elevando a voz! E quando ele acaba... ela diz: “Eu te amo”.
Um verdadeiro paradoxo: por um lado um ataque violento,por outro uma resposta amorosa. Será?
A pergunta mais séria é se não seria o contrário... Não seria Breuer que estava dizendo que “gostava dela apesar de tudo?”. Em vez de dizer: “eu te amo” ele diz “eu te odeio”. “Omnis determinatio negatio est”.
P – Nós também pudemos ver o nome da Berta ...no túmulo da mãe!
R – Isso mesmo! Você seguiu a lógica dos acontecimentos. E eu vou aproveitar o que você acabou de dizer, para mostrar outra etapa na análise de Breuer.
Nesse momento... ele já está com Freud. E vocês devem ter percebido como o aparecimento de Freud é muito menos espetacular que o de Nietzsche. E este fato é importante também do ponto de vista histórico.
É como se o Irvin dissesse: Freud ainda não era o grande Freud que veio a ser depois. E, com isso,elecontinua valorizando a contribuição de Breuer nessa etapa.
Dito noutra linguagem: Breuer ainda é médico e continua trabalhando com os recursos da hipnose. Aos poucos, porém, Freud vai lhe mostrar como a “psicanálise não é medicina”, e nem o tratamento psicanalítico é idêntico ao tratamento médico.
Vou voltar, portanto, à nossa sequência, que é a seguinte: aos poucos, Breuer vai tendo os mesmos problemas de Nietzsche. Ele vai ficando doente “da cabeça”... e de repente tem um sonho, aliás dois...
O primeiro é quando Breuer cai nas profundezas da terra e, lá embaixo, encontra um caixão. Quem estava dentro do caixão? Se entendi bem, era seu pai.
E Breuer se queixa de o pai ter morrido quando ele ainda era pequeno, deixando-o só com a mãe, correndo os riscos de uma transferência edípica. Mais ainda, uma transferência edípica... deslocada da mãe que se chamava Berta, para a paciente com o mesmo nome.
E quem lhe faz semelhante observação...é o próprio Nietzsche, quando ambos (em sonho) visitam o cemitério. Estava escrito na lápide o nome da mãe “Bertha”; e Nietzsche pertinentemente observa: “Mas você não me disse que sua mãe se chamava Bertha!”
A transferência amorosa de Breuer para com Bertha Pepenheim, não deixava de ser um deslocamento da transferência do filho para com a mãe! E talvez, por isso mesmo, não pudesse ter tido outras consequências...
PARÁGRAFO OITAVO. Mas eu quero valorizar agora o aspecto dinâmico na evolução da problemática do próprio Breuer. Se a gente quisesse analisar outra sessão... nós ficaríamos só com o Breuer. E veríamos como ele chega ao máximo e por assim dizer “mata” Mathilde.
Ele fica em casa, trabalhando no laboratório, ...eMathilde vem se queixar: “Você não me dá atenção. Você fica aqui até altas horas da noite. Você não vai dormir comigo!”. E há um momento em que ele não aguenta mais e resolve ir embora.
Este momento do filme, em que Breuer resolve ir embora, deve ser lido e visto com muita atenção. Não acho que ele tenha saído à procura de Berta. Acho sim que ele não estava aguentando a culpa de viver dentro de casa... sabendo que Mathilde conhecia o problema da Berta. Isto é: ele não podia ser verdadeiro com a esposa... enem podia dizer a ela o que mesmo se passava dentro dele.
E assim acontece com o Breuer algo parecido com o que aconteceu com Nietzsche, no início: solidão, desamparo, desespero... E em vez do suicídio... sair de casa.
De novo, a gente não sabe se é sonho ou realidade, mas ele vai à procura de Berta. E o que acontece neste momento? Berta estava internada num hospital, e Breuer vai lá à sua procura.
E há um detalhe chocante... ele entra no hospital, sobe a escada... e, de repente, a escada acaba, com uma parede na frente.
P – Parece ser uma sessão de hipnose...
R – O importante é que, na continuação, ele surpreende a Berta com outro... médico.
Breuer ficou escondido atrás de uma coluna... E é uma cena importantíssima em que ele estava à procura do objeto do seu desejo, e “o objeto de seu desejo” lhe foi recusado por ela! Breuersurpreendeu Berta na hora em que ela dizia ao médico a mesma frase que havida dito a ele: “Você é o único homem da minha vida”.
Nessa hora, Breuerdeixa a bengala cair, como um ato falho, com efeito involuntário: a bengala cai, a Berta o vê, e nem por isso lhe dá qualquer atenção. Breuer se retrai, saindo de cena.
E logo em seguida surge o aspecto mais delicado do drama de Breuer: ele resolve, por assim dizer mudar de vida, inclusive deixando de ser médico. Corta a barba, muda de roupa e vai trabalhar num restaurante. E na porta do restaurante estava escrito HELP WANTED, como um pedido de ajuda feito por ele próprio.
Ele entra, começa a servir, e para surpresa de todos, lá estavam Freud e Lou André Salomé, sentados numa das mesas. Nessa hora, assim como Nietzsche, Breuer tem uma fantasia suicida, sai correndo e atira-se no lago.
Acho muito significativa a metáfora do lago. Assim como, na bíblia, “o espírito de Deus pairava sobre as águas”, mostrando como são fonte de vida, paradoxalmente elas podem ser também lugar da morte e do suicídio. Nas profundezas das águas... Breuer estava morrendo!
Só que Freud vem atrás e consegue salvá-lo.
Esta é uma metáfora linda: Freud salva Breuer que estava morrendo afogado... suicidando. Dentro do lago, Freud começa a contar um, dois, três... para acordar Breuer daquele pesadelo hipnótico. Breuer acorda, liberto do pesadelo de sua própria morte! Noutras palavras: assim como Breuer havia salvo Nietzsche, agora é Freud que salva Breuer.
PARÁGRAFO NONO. A partir de certo momento, a gente pode dizer... não digo que se curaram (não há cura em psicanálise!), mas ficaram muito melhor. E então acontece o encontro de ambos. Foi “QUANDO NIETZCHE CHOROU”!
Nietzsche chorou no dia em que Breuer, tendo passado por um processo de purificação interna, pôde ouvir Nietzsche que também tinha chegado a um ponto mais saudável. E esteé o momento em que um dá a mão ao outro, e Breuer, espontaneamente, deixa de chama-lo de HERR PROFESSOR, para dizer simplesmente MEU AMIGO. Nietzsche tem um primeiro momento de espanto, mas logo em seguida retribui, não só com gestos e o olhar... mas numa atitude por inteiro.
CONCLUSÃO: E aí vem a sequência final: Breuer convida Nietzsche para jantar em casa dele. Nietzsche recusa, dizendo que ia viajar, ao encontro de Zaratustra.
E quero valorizar a figura de Zaratustra, do ponto de vista do vocabulário empregado por Nietzsche ao dizer que ia encontrar-se com o PROFETA.
Também do ponto de vista teológico, qual o papel do profeta? O profeta é um intérprete. De que? Da palavra de Deus. Onde? Na história. Que história: os acontecimentos em que estamos envolvidos.
Na Bíblia, “os profetas manifestam o sentido da palavra de Deus na história do Povo de Deus”. E Zaratustra é um profeta, digamos assim, que interpreta o sentido humano da história dos homens.
O que Nietzsche foi buscar em Zaratustra? A confirmação de sua intuição a respeito do “humano, demasiadamente humano”.
Por outro lado, Breuer volta para casa e tem uma reunião bonita com a família, na qual, por assim dizer, eles fazem as pazes. A começar pelos filhos.
Um detalhe que não mencionei foi o seguinte: quando Breuer vai embora... as filhas (edipicamente) lhe suplicam: “Papai querido... não vai embora”. Mas o filho (edipicamente) não hesita em mandar o pai embora: “Vá embora! Você não quer ir? Pois então vá!”. De novo numa relação edípica, o filho homem, manda o pai embora.
Na volta, depois do pai curado, há um jantar em que Breuer se reconcilia com o filho sentado a seu lado. Brincando... com a moeda na mão... fazendo-a aparecer e desaparecer.
E a cena final, a mais bonita do lado do Breuer, é quando a mulher ia saindo... Breuer vai atrás e lhe diz: “Mathilde, eu queria me casar com você”. E ela dá uma resposta extraordinária: “Mas nós estamos casados há muito tempo”. Da parte dela não houve interrupção.
Neste momento, também Breuer se sentiu “amado”. Assim como Nietzsche sentiu-se amado “e chorou”... Breuer se reconcilia com Mathilde, e fica feliz.
O filme termina dessa forma: Nietzsche indo ao encontro de Zaratustra, Breuer reconciliando-se com Mathilde e os filhos.
Um detalhe importante é que, neste contexto, Freud vai assumindo um lugar mais importante que o do próprio Breuer. Eu quase diria: neste momento, nasceu a psicanálise propriamente freudiana. Que beleza!
E há um detalhe poético, com o qual vou terminar. Eu tinha a intenção de falar também de um ponto de vista teológico (a partir da morte de Deus). É um aspecto importante, para quem se interessa pela teologia: também ela passou por uma crise em função, eu diria, de seu diálogo com a filosofia, mas também... em função da história do Povo de Deus, em razão de problemas sócio culturais. (Cf. a última aula do curso do GEOB).
Neste contexto, vou exagerar um pouco, e vocês me entenderão: a América Latina começou a ter um papel importante na história da Igreja, com o encontro de Medelin e a Teologia da Libertação.
Ali se pensou numa nova expressãoda fé e do bem comum, a serviço dos mais necessitados. Há vários textos de “Teologia da Libertação”. Não só do ponto de vista econômico... mas sócio cultural.
Mas eu queria chegar ao ponto de mencionar um dos novos teólogos no Brasil... que também teve seus problemas com a autoridade eclesiástica. Chama-se Leonardo Boff.
A quem estiver interessado em teologia e em espiritualidade cristã: eu recomendo Leonardo Boff, por exemplo nesse livro intitulado “O tempo de transcendência” (que não deixa de ser outra maneira de falar de CHRONOS e KAIROS).
E ele diz que fez uma pesquisa, e nas últimas páginas escreve:
“Como estamos no centenário da morte de Nietzsche, com muitas celebrações, quero terminar, com uma oração belíssima, desse desesperado filósofo alemão que pregou a morte de Deus e fez a crítica mais violenta do cristianismo”. Mas o fez a partir de uma experiência radical do Deus vivo. Quando ele anuncia a Morte de Deus... ele fala de um deus que tem que morrer mesmo, porque é o deus de nossas cabeças. O deus inventado, o deus da metafísica, o deus transmitir todo o seu teor poético”. “O título é: que não é vivo. Ele fez uma oração que eu traduzi, sem chegar a
A ORAÇÃO AO DEUS DESCONHECIDO”.
“Antes de prosseguir em meu caminho
e lançar meu olhar para a frente,
uma vez mais elevo, só, as mãos a TI,
na direção de quem eu fujo.
A TI, das profundezas de meu coração,
tenho dedicado altares festivos,
para que, em cada momento,
tua voz me pudesse chamar.
Sobre esses altares, estão gravadas
em fogo, estas palavras:
Ao Deus desconhecido!
Seu , sou eu, embora, até o presente
tenha me associado aos sacrílegos.
Seu, sou eu. Não obstante os laços
que me puxam para o abismo.
Mesmo quando fugir... sinto-me forçado a servi-lo.
Eu quero te conhecer, Desconhecido.
Tu que me penetras a alma e
qual turbilhão, invades minha vida.
Tu o incompreensível, meu semelhante.
Quero te conhecer. Quero servir
Somente a Ti.
Com estas palavras, me despeço de vocês, desejando que façam bom uso de tudo isso, em suas vidas. Individualmente, e com seus familiares. Mas, principalmente, com seus pacientes.
E até outra vez!
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