Persona,
ou Quando duas mulheres pecam (1965)
Ingmar Bergman
Obra-prima de Ingmar Bergman, é considerado um dos filmes mais enigmáticos na história do cinema. A escolha do título ‘Persona’, remete tanto à tradição do teatro trágico da Grécia, no sentido de uma “representação” de papéis, quanto à teoria psicanalítica junguiana, com o conceito de máscara, à teoria freudiana da divisão do sujeito em consciente e inconsciente, e à proposta lacaniana do estádio do espelho e da “mascarada”.
O segundo título, também enigmático (inadequado?) e estranho: ‘Quando duas mulheres pecam’, já é o conceito cristão de falta moral, mais ou menos correspondente à noção de erro de julgamento racional dos gregos daquela época.
Vários filmes de Bergman, incluído este, foram proibidos pela Igreja Católica, segundo depoimento do cineasta Wim Wenders (Netto, 2017, pág. 122) que relembra seus tempos de aluno, antes de ingressar na Faculdade, quando junto com a namorada, ia escondido, contra a proibição expressa da escola, da Igreja e dos pais, para assistir aos filmes de Bergman [...] como O silêncio, O sétimo selo, Morangos silvestres, Persona, Gritos e sussurros. Após as projeções, costumava perambular pelas ruas, debaixo de chuva, até o amanhecer, ruminando na cabeça as questões sobre a vida e a morte levantadas por Bergman. Por sua vez, Bergman buscava tais inspirações em seus próprios sonhos.
a) Proscênio.
Quantas pessoas aparecem neste filme? São cinco pessoas distintas, ou uma só, duplicada, acompanhada de três heterônimos ou de três pessoas reais?
Os personagens Elisabete, atriz famosa, e a enfermeira Alma são certamente uma só e mesma pessoa. Alma é a alma de Elisabete. Alma é a tradução de outro conceito junguiano, anima. Correspondem ao título de um livro do poeta maior: O eu profundo e os outros eus (Pessoa, 1980, pág. 5). Trata-se da história cotidiana de todos nós, com um eu consciente falante e um eu inconsciente, mudo, manifestado em sintomas, já que o recalque não atinge diretamente os afetos, mas incide sobre as palavras que os representam. Passa-se da realidade à ficção e vice-versa. Até fisicamente estas duas protagonistas são parecidas. Na linguagem freudiana, Alma é o conteúdo manifesto de um sonho constante, cujo conteúdo latente, em Elisabete, só aos poucos vai se revelando (Freud, 1972, pág. 687).
Segundo a psiquiatra de Elisabete, não existe aí nenhuma patologia, nem neurose, nem psicose, nem autismo. Esclarece que ninguém sabe o que é real ou não, mentira ou verdade. Para amenizar o estresse de Elisabete, a médica recomendou-lhe repouso, oferecendo sua casa de verão para passar um tempo junto com a enfermeira.
Elisabete não fala, para evitar ter que falar mentiras, já que é impossível dizer a verdade. Entre ser e parecer, prefere não usar palavras, máscaras ou personas, que dizem falsidades. Cansada de representar, resolveu simplesmente ser verdadeira.
Alma é o pré-consciente que sustenta uma narrativa em um ‘discurso da histérica’, segundo a denominação lacaniana (Lacan, 1992, pág. 87). Elisabete constrói os juízos de existência e de valor freudianos, manifestando-os somente por gestos ou abanos de cabeça.
Na tela encontramos o tema freudiano do sujeito dividido, do duplo narcísico, que tanta estranheza causa, e nos defrontamos também com seu correlato lacaniano e dialeticamente hegeliano, o estádio do espelho, em que a consciência de si decorre da consciência do outro. Trata-se de uma subjetividade inerente ao fato de que somos seres falantes.
Assim, o filme parece reproduzir uma sessão de análise, em que Elisabete provoca o desejo de falar em Alma. O silêncio da ‘analista’, evitando qualquer julgamento, impele a paciente a dizer tudo o que lhe vem à cabeça, criando as condições para o estabelecimento de uma transferência positiva e negativa, de amor e ódio, imaginária e simbólica, abrindo o inconsciente para uma catarse que, hoje, aloja-se no cinema e no divã do psicanalista.
Alma escreveu um livro em que é recorrente o tema da falta de sentido na vida, a solidão, a culpa, o medo da morte, a náusea sartreana do destino da mulher, milenarmente obrigada a se casar e ter filhos, sem o apanágio de decidir sobre o próprio desejo. Alma relata que abortou de um filho, e informa que Elisabete também desejara abortar seu filho, do qual se afastou depois.
A tese de que as duas são a mesma ‘persona’ é insinuada exaustivamente no filme. Os corpos e os rostos das duas aparecem superpostos várias vezes. Alma diz: você devia ser como eu; nós somos parecidas, mas você é mais bonita. Eu poderia me tornar você. As duas tomam chá na mesma xícara. Doutra feita, Alma está dormindo no quarto escuro, e Elisabete, qual fantasma, aproxima-se e a acaricia. De manhã, Alma lhe pergunta: você esteve comigo ontem à noite? Resposta: giro de cabeça, indicando que não. Noutra noite, antes de ir dormir, Alma se mostra cansada, apoiando a cabeça na mesa, e ouve-se a frase murmurada: assim você vai dormir na cadeira. O filme não mostra quem disse isso. Alma pergunta se foi Elisabete quem falou. Resposta: o mesmo gesto negativo. Num momento em que as duas se acariciam, Alma observa: você tem uma ruga na testa. A transitoriedade? A psiquiatra dissera que o suicídio de Elisabete estava fora de questão.
Numa inversão de papéis, Alma se apresentara, no início do filme, como uma ‘irmã’, uma enfermeira que iria cuidar de Elisabete. No fim, é Alma que pede ajuda e diz a Elisabete: o silêncio pode ser uma grande força mental.
Elisabete escreve uma carta à psiquiatra, e Alma se oferece para entregar à destinatária. Mas o envelope estava aberto, e Alma, cheia de curiosidade, lê a carta. Acontece que a “carta roubada”, como no conto de Edgar Allan Poe, dirige-se a “Querido”, e não se sabe se, propositalmente ou por erro de tradução, usou-se o gênero masculino. Possivelmente seriam duas cartas, uma para a psiquiatra e outra para o marido de Elisabete, porque logo depois, chega uma carta deste distante marido, Vogler, para Elisabete, em que relata que obteve informações da psiquiatra, e pergunta: existe algum terrível mal-estar entre nós? Somos duas crianças governadas por poderes incontroláveis.
As duas parecem ter um pesadelo igual, contorcendo-se na cama, ao mesmo tempo, ouvindo vozes do Sr. Vogler, que aparece pouco depois, com óculos escuros como um cego, e confunde as duas mulheres, abraçando Alma e dizendo que o filho deles sente falta da mãe. Ele transa com Alma, achando que é Elisabete. Alma lhe diz: eu não sou Elisabete, e ele responde: mas é igualmente amada. Ela retruca: nós o amamos, você é um amante maravilhoso. Ele mostra para Alma a foto do filho adolescente que Elisabete tentara abortar. E acrescenta: é tudo mentira ou imitação.
Alma relembra que tivera um caso com um homem mais velho, e que tinha feito uma orgia com rapazes, engravidando e abortando. Relata também a culpa que ambas sentem, a falta de sentido na vida, o vazio e, ao implorar, pela enésima vez, que Elisabete diga alguma coisa, escuta finalmente, como resposta, um simples balbucio: nada, única palavra que Elisabete profere em todo o filme. No final, aparece um rosto composto de duas partes, metade Elisabete e metade Alma. Esta faz as malas e se separa de Elisabete, sem despedidas.
b) Bastidores. Por que Elisabete ficou muda?
Há dois momentos decisivos para a compreensão do filme:
- No final, algo raríssimo no cinema, um trecho de uns cinco minutos é repetido, ipsis litteris, duas vezes, em que Alma relembra a ‘verdadeira’ história em que o marido (de Elisabete), pródigo de elogios às qualidades desta, acrescenta que só falta a ela uma coisa: a responsabilidade de assumir a maternidade. Alma explica que isto levaria Elisabete a ter que abandonar o teatro e ficar com o corpo inchado. Grávida, a atriz tentou abortar o filho várias vezes. O bebê nasceu a fórceps. E Alma interpreta: “você queria um bebê morto”. Elisabete desejou o filho, ou seguiu a pressão do marido?
- No início do filme, Elisabete interpretava, no palco, a tragédia de Electra, versão de Eurípides (484 a.C.). Num determinado ponto da peça, que não é mostrado, ela interrompe a ação, traumatizada, e não fala mais.
Qual é a história de Electra? Sua mãe, Clitemnestra é casada com Agamenon, mas o traiu com Agisto, enquanto o marido lutava em Troia. Agisto tentou matar Orestes, irmão de Electra, para evitar ser morto por ele. Electra salva Orestes e convida-o a, juntos, matarem a mãe e o amante Agisto. Estes últimos já tinham assassinado Agamenon. E já que Electra tinha pretendentes nobres, e Agisto temia ser morto por algum nobre descendente dela, obrigou-a casar-se com um colono pobre e meio impotente (Eurípides, 2015, versículos 34, 35 e 38): Casamos, ô de fora, um casamento morto, não a quem o pai esperava um dia entregar-me. Para Electra, era um casamento morto, porque viçosa, tinha pujança (idem, vers. 20, 248, 250).
No filme, Elisabete empaca na encenação da peça, possivelmente neste momento em que Electra arquiteta o assassinato da própria mãe. Estas duas viviam distantes geográfica e afetivamente. Electra mente, dizendo que vai parir um filho e pedindo que a mãe venha para dar assistência no parto. Resposta da mãe, solícita: Doçuras derramarei ao teu coração (idem, vers. 1068). Quando a mãe chega, Electra lhe diz: mas, se crime se paga com crime, para desforra do pai hei de te matar, eu e o menino Orestes (idem, vers. 1102). Electra e Orestes enterram o mesmo punhal na mãe, que sangra.
Neste momento, tudo indica que Elisabete se identifica com Electra, reconhecendo seus próprios desejos filicidas passados e inconscientes, suscitados agora pelos desejos homicidas de Clitemnestra e matricidas de Electra, e rebelando-se também contra as imposições das exigências sociais e culturais com relação ao casamento e obrigação de ter filhos. Electra matou sua mãe e o padrasto, salvando o irmão. Elisabete desejou matar o filho e afastou-se dele e do marido. Este filho adolescente de Elisabete, que aparece na abertura e fechamento do filme, não será o substituto de Orestes?
Não querendo sujeitar-se a manter as aparências enganosas, não aceitando ser a ‘mascarada’e a persona, Elisabete prefere ser ética consigo mesma, reconhecendo tais desejos, e emudecendo em vez de mentir.
O conceito de mascarada (Roudinesco, 1998, pág. 663) foi desenvolvido por Joan Rivière, ao comentar a natureza da feminilidade moderna, dizendo que as mulheres intelectuais que tiveram pleno sucesso em sua integração social e em sua vida conjugal e familiar estavam, de certo modo, obrigadas a exibir sua feminilidade como uma máscara, a fim de melhor dissimular o seu verdadeiro poder, e consequentemente a sua angústia.
No prólogo e no final do filme, aparecem imagens estranhas e incompreensíveis, como: lâmpadas fortes que acendem (o projetor de filmes, a eletricidade de Electra?), um pênis ereto, o demônio, uma aranha, uma mão segurando uma ovelha que sangra ao ser sacrificada, (o famoso bode expiatório?), vísceras arrancadas, cadáveres, um adolescente, entre outras coisas. Ora, na bela peça de Eurípides, vários destes elementos também aparecem dispersos, em lugares diferentes.
Conclusão
- Foi tudo um grande sonho de Elisabete? Ou o sonho começou quando Alma se despiu do uniforme de enfermeira, no começo do filme, terminando quando volta a usá-lo no final?
- Foi tudo a transcrição fictícia de uma sessão de análise?
- Foi um filme sobre a feminilidade, a maternidade, feminicídio, aborto, vida e morte, o vazio?
- Será Persona uma versão moderna de Electra?
Bibliografia
Eurípides, Electra, Cotia, S.P., Ateliê Editorial, 2015.
Freud, Sigmund. Sobre os sonhos, Rio de Janeiro, Imago, Vol. V, 1972.
Lacan, Jacques, O avesso da psicanálise, Seminário 17, Rio de Janeiro, Zahar, 1992.
Netto, Geraldino A. Ferreira, Wim Wenders, psicanálise e cinema, Campinas, Pontes, 2017.
Pessoa, Fernando. O eu profundo e os outros eus, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
Roudinesco, Elisabeth, Dicionário de Psicanálise, Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
Geraldino Alves Ferreira Netto
Campinas, maio de 2017
Trabalho apresentado em evento do Gepsi (Grupo de estudos de psicanálise), no auditório da Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp, no dia 17 de maio de 2017, e no Espaço Soul-Estudos da Alma, em Campinas, dia 28-10-2017.