Tatuagem: uma escrita do inconsciente?
Era uma tarde quente, e eu estava agora na planície, num grande Shopping Center, tomando um café, apreciando ao longe a Cordilheira dos Andes, onde estivera, uma hora antes, passeando no Vale Nevado. Nesta estação de esqui, em Santiago do Chile, a temperatura cravava a 0 grau, mas o vento desmentia os termômetros. Na mesa à minha frente, sentava-se um jovem casal de namorados. O rapaz, em manga de camisa, ostentava sua tatuagem, onde se lia muito visivelmente, no braço direito: “I love you” e, no esquerdo, “I hate you”. Eu ficava imaginando o que se passaria na cabeça da menina, diante do namorado, com as mensagens contraditórias, impossíveis de não ver: te amo, te odeio. Signo e significante de braços dados. Sinal escrito no corpo, daquilo que está inscrito em outro lugar. No lado direito, da educação e da consciência, o manifesto que se espera socialmente. No lado esquerdo, inconsciente, latente, estranho ou sinistro, aquilo que é verdadeiro, autêntico, mas ameaçador e indizível. Impossível não lembrar aqui a afirmação de Lacan (1964, p. 30): “Se vocês me permitem acrescentar alguma ironia, o inconsciente se acha na margem estritamente oposta à de que se trata no amor”.
Certamente que o rapaz não apreendia toda a profundeza de sua mensagem, que contém uma síntese de grande parte da teoria psicanalítica, as pulsões de vida e de morte, amor e ódio, masculino e feminino.
A história da tatuagem, da pintura corporal, dos piercings, não nos é contemporânea. Os povos ditos primitivos, que não usavam roupa, precisavam marcar sua diferença e identidade, com indicadores no corpo, com vários tipos de pintura, conforme iam para a guerra, para as festas ou comemorações, quando queriam disfarçar-se, mimetizar-se diante dos animais, para atraí-los na hora da caçada, bem como para marcar o pertencimento a determinada tribo. Além disso, incrustavam discos de madeira nos lábios ou orelhas, avolumando-os como sinal particular. Os xamãs vestiam peles de animais, incorporando um poder suposto e eficiente, que provinha da natureza.
Já os povos ditos civilizados, escondendo a nudez com o uso de roupa, substituíram as pinturas pelas várias formas de moda, adaptadas a cada estação do ano, a cada atividade ou situação cotidiana, e trocaram os discos de madeira, incrustados nos lábios ou nas orelhas, pelos anéis de metal, colocados, agora em qualquer parte do corpo, visíveis, alguns, misteriosos, outros. Assim, as tatuagens, caídas em desuso, voltam hoje com toda força, escondidas ou não pela roupa. Quando fora da roupa, oferecem-se à vista dos outros, com todo tipo de mensagem possível. As demais, semi-escondidas, mas anunciadas, provocam ainda mais a fantasia quanto à sua forma e localização. A maquiagem, obedecendo à indústria dos produtos de beleza, é uma forma moderna e politicamente correta de tatuagem prêt-à-porter. Também a indústria dos piercings torna seu uso obrigatório em determinadas tribos. Com relação a estes, a tentativa de complementar a estética e camuflar a castração obtém seu efeito contrário, enquanto introduz ainda mais furos em nossa já faltante constituição humana. O significante piercing significa ‘perfurante’.
A modernidade e o avanço da medicina propiciam novas formas de afirmar a identidade e a estética. Os implantes de silicone, as cirurgias plásticas, as lipoaspirações e os botox, feitos com finalidade rejuvenescedora, tentam apagar as marcas naturais tatuadas pela vida. Mais uma vez, é a negação da falta e da morte. As pinturas do corpo situam-se, hoje, mais nos cabelos, nas unhas e nas tatuagens, em ambos os sexos.
De acordo com Fantini (2009, p. 121):
Uma das abordagens contemporâneas deste assunto parte das relações entre simulacro e corpo. O tema ganha complexidade quando se considera o uso crescente de tatuagens e piercings, implantes ou a chamada Body art. Embora estes comportamentos possam ser encarados como um mero modismo, eles talvez constituam um fenômeno interessante, na medida em que podem representar uma forma de inscrição social. Uma explicação possível é a de que eles talvez sejam o preço – social e corporal – da expansão absoluta do simulacro.
Alguns tipos de mensagens que os tatuadores e usuários de piercing querem enviar:
- políticas: as tatuagens de números identificadores dos prisioneiros de guerra e das penitenciárias;
- ideológicas: referências à religião, a um partido político etc;
- esportivas: escudos ou bandeiras das equipes de futebol ou outros esportes;
- étnicas: a estrela de Davi identificando os judeus perseguidos no Nazismo;
- ecológicas: homenagem à natureza, através dos desenhos de astros, borboletas, tartarugas, baleias etc;
- ficcionistas: os dragões, vampiros e monstros de toda espécie;
- comemorativas: fixando alguma data ou evento importante na vida de alguém;
- amorosas: ostentando o nome ou retrato de parceiros ou amantes;
- de homenagem: à família, aos antepassados, aos ídolos;
- narcísicas: referentes às virtudes ou qualidade do próprio sujeito;
- estéticas: embelezamento do próprio corpo.
Nem sempre os tatuadores percebem toda a extensão dos motivos inconscientes que fundamentaram suas escolhas. No dia 01-01-2011, na posse presidencial veiculada pela televisão, a esposa do atual vice-presidente da República mostrou, ostensivamente, para o Brasil e o mundo, o nome do marido, tatuado na nuca. Carrega-o, com todas as letras, nas costas.
Uma amiga tatuou as primeiras iniciais dos nomes de seu pai, sua mãe, seu irmão, e de si mesma, acrescentando a frase: “para sempre”. Uma bela promessa, mas a região entre lombar e sacra em que localizou a inscrição não parece muito ‘católica’ para uma ideia tão sagrada. Alegou portar outra tatuagem, de uma tartaruga, elogio à natureza, em lugar do corpo não revelado.
Uma ex-aluna do curso de pós-graduação lato sensu, ‘Psicanálise na Cultura’, em Campinas, declarou em entrevista concedida ao autor deste artigo:
"Para mim, a tatuagem significa muito mais que um desenho escolhido por gosto ou por afinidade. Existe uma manifestação inconsciente de demonstrar algo pra si e para o mundo. É exatamente como pintar um quadro, mas pinta-se na pele. Muitas vezes não temos essa aptidão e, pedindo para alguém que a tenha, através de algum desenho ou escrita, conseguimos que outra pessoa desenhe em nós as nossas ‘vozes interiores’.
As tatuagens geralmente vêm em momentos em que a vontade de falar, de gritar é tão grande, mas o corpo não acompanha, a garganta nos trai, e não diz o que precisa ser dito, ou gritado, então damos um jeito de ‘obrigar’ o corpo a dizer. A garganta, um órgão tão pequeno e aparentemente insignificante, dá lugar ao maior órgão do corpo humano, a pele, e é nesse que eu grito. Assim como numa palestra, num quadro, numa entrevista, muitos olham e não entendem absolutamente nada. Outros olham e sentem afinidade, querendo ir até o mesmo tatuador, porque assim sentem que ele, como um psicanalista, poderia entender o seu problema da mesma forma que entendeu o meu, e retratar a sua realidade. Muitos sentem repugnância e, na maioria dos casos, manifestam frases do tipo: é bonito em você, mas eu jamais teria coragem de fazer uma. Seguida de uma pergunta obrigatória: dói muito? Seria coragem do quê? De se expor ao mundo? De sentir as dores da exposição? De aguentar as consequências da marca de uma fase para o resto de sua vida?
Os momentos de transformação nos geram inseguranças sobre o que de bom ficou realmente sobre isso (porque interessa somente o bom) e, nesse caso, às vezes sentimos que é melhor esconder no bom e velho baú, para que pareça que nunca existiu. Vejo por minhas tatuagens. A primeira fiz a oito anos atrás, eu tinha 27 anos. Foi um pouquinho antes do casamento, no mesmo ano. Desenhei um sol e uma lua se unindo em harmonia. E você acha que, na época, eu tinha consciência disso? Eu estava suplicando que houvesse harmonia nessa nova fase da minha vida! Algo de novo, inesperado, diferente! O casamento, assim como uma montanha-russa, me deixou em dúvida do que eu realmente era, e de quem seria dali pra frente. Uma roda de emoções tomou conta de mim, e desenhei em meu ombro esquerdo um sol grande sorrindo, com uma série de outros ‘mini-sóis’ em seus diferentes temperamentos, como se eu quisesse assumir para mim mesmo que eu poderia sentir todas aquelas emoções simultaneamente, sem culpa.
O momento passou, e a imaturidade do meu marido fazia com que ele pensasse muito em bebida, festas, e a minha insegurança com relação ao casamento foi aumentando. Eu tinha que dar um jeito de sentir que ele me amava, então tatuei na canela direita um homenzinho segurando uma garrafa de pinga 51 em uma mão e, na outra, um balãozinho de coração para entregar a uma menininha... éramos nós... Minha filha nasceu, e senti necessidade de provar a minha feminilidade, aquela que eu tinha perdido, porque agora eu não era mais uma mulher, eu me sentia uma mãe. E mãe, pra mim, era o exemplo da minha: sem vaidade, sem ser amada, que não poderia jamais ser sensual. Desenhei uma fada. Uma fada extremamente sensual. Com os seios enormes, uma cintura fininha, e com asas! Asas para voar sempre que quisesse! Mas, assim como no início, eu não poderia me esquecer do casamento, desenhando nas suas asas o sol e a lua novamente, mas agora não tão unidos como no início, com algumas nuvens intercalando. Em seu braço direito, um olho de Hórus, proveniente do Egito Antigo, que significa Proteção e Poder, o qual protegeria o meu lado emocional. Em minha garganta, uma gargantilha em formato de libélula. O espírito de libélula significa que você tem de fazer um esforço para expressar suas esperanças, sonhos, necessidades e desejos conscientemente. O espírito de libélula é a essência dos ventos de mudança, as mensagens de sabedoria e esclarecimento, a comunicação do mundo elementar. E, para completar, as famosas borboletas em torno da ‘fada sensual’, que não poderiam ser mais claras que a mudança que eu desejava em mim mesma.
Agora me pergunto, como é que meu inconsciente conseguiu reunir tantas informações em um desenho, e uma escolha tão rápida, quase que formatada? Foi questão de segundos para que eu visse a fada sensual, pedisse para incluir uma determinada asa, uma gargantilha, uma tatuagem de libélula na própria fada, e três borboletas... Exatamente três borboletas. Acredito que as tatuagens podem nos mostrar muito mais coisas do que imaginamos. As tatuagens para mim são um divã, aonde não preciso esperar atos falhos, chistes, nada. Está tudo ali! Olhe e saberá!"
As tatuagens são a moderna mascarada, e carregam o mesmo significado, enriquecido agora, das antigas máscaras. A etimologia de ‘máscara’ provém do baixo latim mediterrâneo, cujo primeiro significado, de acordo com J. Picoche (1979, p. 413, verbete masque) era ‘demônio’. Da representação do demônio, passou a indicar a feiticeira. Já a ‘mascarada’ significava escurecer o rosto, transformá-lo em sombra, para torná-lo irreconhecível. No teatro grego, a máscara recebe o nome de persona, porque, coberto o rosto, somente pelos sons da voz poderia identificar-se o personagem. É o imaginário provocando o simbólico. As máscaras do carnaval costumam ser divertidas e lúdicas, além do transvestismo de muitos homens que vestem saia. Mas, no caso das tatuagens, não admira que muitas sejam, além disso, também agressivas ou ameaçadoras.
A máscara é uma extensão da pele, e ambas, máscara e pele, delimitam um interior de um exterior. E são também uma forma de camuflagem ou dissimulação daquilo que é natural. As tatuagens dissimulam por fora, os implantes se escondem dentro. São objetos intermediários, transicionais, pelos quais o sujeito passa pelo que não é ou por aquilo que desejaria ser, agregando um poder a mais. Os pontos mais visados do corpo humano são o nariz, os olhos, a boca, os ouvidos (aguçando os sentidos), o rosto como um todo, os seios, as nádegas, os cabelos ou qualquer pedaço de pele. O quê do sujeito precisa ser evitado ou exibido?
As tatuagens e os implantes tentam exibir ou esconder o quê? Escondendo ou exibindo, o objeto é o mesmo que já foi exilado para o inconsciente. Ao esconder, eles escancaram, pela denegação, o recalcado. Ao exibir, elas denunciam o retorno do recalcado.
O tema da tatuagem tem presença escassa na psicanálise. Freud (1913, p. 127) referiu-se a ela em Totem e tabu, como um dos doze códigos do totemismo, um catecismo da religião totêmica: “Muitos clãs utilizam representações de animais em suas insígnias e armas; os homens costumam pintar ou tatuar figuras de animais no corpo”. Lacan (1966, p. 107), abordando o tema da agressividade em psicanálise, relembra certos fenômenos mentais, aos quais chama de imagens, termo confirmado por todas as acepções semânticas, prenhes de intenção agressiva:
São as imagens de castração, emasculação, mutilação, desmembramento, desagregação, eventração, devoração, explosão do corpo, em suma, as imagos que agrupei pessoalmente sob a rubrica, que de fato parece estrutural, de imagos do corpo despedaçado.
Há aí uma relação específica do homem com seu próprio corpo, que se manifesta igualmente na generalidade de uma série de práticas sociais – desde os ritos da tatuagem, da incisão e da circuncisão, nas sociedades primitivas, até aquilo que poderíamos chamar de arbitrariedade procustiana da moda, na medida em que ela desmente, nas sociedades avançadas, o respeito às formas naturais do corpo, cuja ideia é tardia na cultura.
No capítulo sobre a anamorfose (distorção ou deformação da imagem), Lacan (1964, p. 87) se diverte ao falar da tatuagem peniana, algo que podemos imaginar, desde a turgescência imaginária da potência e completude, até sua detumescência simbólica de impotência e falta, consequência de sua deformação no estado de repouso, quando não se consegue mais visualizar a tatuagem. Lacan segue a ordem inversa: “Como é que pode acontecer que ninguém jamais pensou em evocar a esse respeito [...] o efeito de uma ereção? Imaginem uma tatuagem desenhada no órgão ad hoc, em estado de repouso, e tomando em outro estado sua forma, se ouso dizer, desenvolvida”. Brincadeira à parte, mais adiante (p. 135), a tatuagem é assemelhada ao traço unário, o primeiro dos significantes:
O traço unário, o próprio sujeito a ele se refere, e de começo ele se marca como tatuagem, o primeiro dos significantes. Quando esse significante, esse um, é instituído – a conta é um um. É ao nível, não do um, mas do um um, ao nível da conta, que o sujeito tem que se situar como tal. Com o que os dois uns, já, se distinguem. Assim se marca a primeira esquize, que faz com que o sujeito como tal se distinga do signo em relação ao qual, de começo, pôde constituir-se como sujeito.
Voltando à cena do Chile, o que expressam aquelas imagens sugere que aquele rapaz estava sendo autêntico, talvez sem o perceber, e sem tomar consciência da profundidade de seu discurso amoroso ambivalente. A mocinha, sabe-se lá o que ela pensava.
A presença, aparentemente contraditória do amor e do ódio, inconcebível dentro da lógica aristotélica, cintila de brilho na lógica do fantasma, do inconsciente. Tudo o que Freud afirmou sobre a discordância amorosa, sobre a natureza narcísica do amor, toda a sua dúvida sobre o que quer uma mulher, ali estão patentes. Consciente e inconsciente, saber e verdade, se dão as mãos numa banda de Moebius, como afirmava Lacan (1966a p. 870), ao falar do estatuto do sujeito. Dentro e fora, amor e ódio, bom e mau, juntos, inseparáveis, intercambiáveis: “Esse fio não nos guiou em vão, já que nos levou a formular nossa divisão experimentada do sujeito como divisão entre o saber e a verdade, acompanhando-a de um modelo topológico: a banda de Moebius, que leva a entender que não é de uma distinção originária que deve provir a divisão em que esses dois termos se vêm juntar.”
Freud (1920, p.70) deparou-se com esta questão, de forma bem explícita, quando teorizou sobre a pulsão de morte. Seu oposto (superposto?), a pulsão de vida, incluía o amor, antes apelidado de pulsão sexual. Sempre que falava de erotismo, sua referência era o conceito de Eros (deus do amor, em Platão): “A libido de nossos instintos sexuais coincidiria com o Eros dos poetas e dos filósofos, o qual mantém unidas todas as coisas vivas”. O amor participa, portanto do quadro das pulsões, que, entretanto, não foram catalogadas exaustivamente. Diz ele na página 74:
“Partimos da grande oposição entre os instintos de vida e de morte. Ora, o próprio amor objetal nos apresenta um segundo exemplo de polaridade semelhante: a existente entre o amor (ou afeição) e o ódio (ou a agressividade). [...] Desde o início identificamos a presença de um componente sádico no instinto sexual. [...] Onde quer que o sadismo original não tenha sofrido mitigação ou mistura, encontramos a ambivalência familiar de amor e ódio na vida erótica.”
Três anos depois, vem uma leve explicação para a ‘mistura’ citada acima. Em Freud (1923, p. 56, 57), surgem os conceitos de fusão (união) e desfusão (desunião) das pulsões. Poder-se-ia pensar então em fusão das duas classes de pulsão, uma com a outra, como no caso do sadismo com a pulsão sexual; ou em desfusão, quando o sadismo age de forma independente, enquanto perversão. Já a tão falada ambivalência teria um estatuto especial, de uma fusão pulsional que não se completou.
Tais ideias vinham amadurecendo, havia já quase uma década. Quando Freud (1915, p. 154) explicita os destinos diversos das pulsões (transformação da atividade em passividade, retorno sobre a própria pessoa, recalque e sublimação), abre uma exceção para o amor: “A mudança do conteúdo de um instinto em seu oposto só é observada num exemplo isolado - a transformação do amor em ódio. Visto ser particularmente comum encontrar ambos dirigidos simultaneamente para o mesmo objeto, sua coexistência oferece o exemplo mais importante de ambivalência de sentimento”. Mas existem outras oposições, segundo ele: além do amar-odiar, existe também a de amar-ser amado, e uma terceira possibilidade, amar-odiar em oposição a desinteresse ou indiferença.
Para a psicanálise, tal ambivalência é explicada pelo fato de que a própria constituição do sujeito o leva à alienação. Ao introduzir na teoria o conceito de narcisismo, Freud (1914, p. 93) deixa claro que “o ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. [...] sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao autoerotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo”. Para que surja o sujeito, é necessária a presença e atuação de outros, como a mãe, o pai, os irmãos etc, aqueles em torno dos quais vai se organizar o complexo de Édipo. A criança depende destes outros para sobreviver e para se incluir na cultura. Além disso, ao perceber-se cercado de amor, “Sua Majestade, o bebê” (p. 108) tem que lutar bravamente diante de qualquer outro pretendente ao mesmo trono. Assim, o duplo dele mesmo tem que ser destruído. Vai ter até que matar o próprio pai. Portanto, o amor narcísico, incestuoso, imaginário, à mãe, situa-se no eu, enquanto que o ódio, decorrente da intromissão paterna e proibição do incesto, pertence à instância do supereu, este herdeiro simbólico do complexo de Édipo. E para Lacan (1986, p. 369): “A função do supereu, em sua última instância, em sua perspectiva última, é o ódio de Deus, recriminação a Deus por ter feito tão mal as coisas”.
Devemos a Lacan (1966b, p.97) a melhor explicação para aquela ‘nova ação psíquica’, nunca explicada claramente por Freud. Trata-se do estádio do espelho, “a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial”. Neste texto, a percepção da imagem do outro é a condição para que o sujeito adquira a Gestalt ou totalidade do próprio corpo, antes despedaçado e, consequentemente, a possibilidade de nomear-se como distinto do outro, reconhecer-se e amar-se. Encontram-se aí também (p.101), as primeiras referências ao ciúme primordial, e à complicada questão do desejo do homem como sendo o desejo do outro. E Lacan observa que, apesar dos esforços da antropologia moderna, “apenas a psicanálise reconhece esse nó de servidão imaginária que o amor sempre tem que redesfazer ou deslindar. Para tal tarefa, não há no sentimento altruísta nenhuma promessa para nós, que expomos à luz a agressividade subjacente à ação do filantropo, do idealista, do pedagogo ou do reformador”. (p, 103). O fato de sermos seres falantes nos coloca diante de muitos mal-entendidos com relação ao nosso próprio desejo. É o que encontramos em Lacan (1966c, p.634): “deve-se afirmar que, obra de um animal presa da linguagem, o desejo do homem é o desejo do Outro”.
A etimologia da palavra ‘filantropia’ é escancarada: amor ao ser humano. Lacan então equipara a filantropia à agressividade. Em outro lugar, (1960, p. 41) nos garante de que “o amor é um sentimento cômico”. Isso nos esclarece quanto a uma de suas frases mais contundentes: “o amor é dar o que não se tem” (1966c, p. 624), porque dar o que se tem é altruísmo, caridade ou hostilidade de quem quer se livrar da presença do outro, mas não é amor. O câmbio do amor pelo ódio já nos pega no berço. Diz Lacan (1966c, p. 634):
Mas a criança nem sempre adormece assim no seio do ser, sobretudo quando o Outro, que também tem suas ideias sobre as necessidades dela, se intromete nisso e, no lugar daquilo que ele não tem, empanturra-a com a papinha sufocante daquilo que ele tem, ou seja, confunde seus cuidados com o dom de seu amor. É a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e usa sua recusa como um desejo (anorexia mental).
Limites em que se aprende, como em nenhum outro lugar, que o ódio retribui a moeda do amor, mas onde a ignorância não é perdoada. Afinal de contas, a criança, ao se recusar a satisfazer a demanda da mãe, não exige que a mãe tenha um desejo fora dela, porquanto é essa a via que lhe falta rumo ao desejo?
Esta citação deveria constar em todos os manuais de pedagogia, para mostrar que a criança é quem alfabetiza os pais, quando estes não agem com ignorância.
Para que o amor seja verdadeiro, há que passar por um processo de destilação e depuração ou, mais propriamente, pelo que Lacan (1960 p. 47), referindo-se a O Banquete, de Platão, chama de metáfora do amor, que consiste em entendê-lo fora do registro imaginário do sentimento de afeto, mas por aquilo que nele introduz a linguagem: “O amor como significante – pois, para nós, ele é um, e não mais que isso – o amor é uma metáfora – na medida em que aprendemos a articular a metáfora como substituição”.
O requinte do diálogo entre Sócrates e Alcebíades levou Lacan a equipará-lo a uma interpretação psicanalítica, quando Sócrates responde que aqueles elogios recebidos se referiam, de fato, a outra pessoa, a Agatão. Diz Sócrates (Platon, 1953, p. 758, tradução nossa):
Meu caro Alcebíades, parece-me que, no fundo, não és um leviano, se pelo menos é verdade o que dizes de mim e se, de fato, está em meu poder tornar-te melhor. Neste caso, estás a ver em mim uma inimitável beleza. [...] Demonstras que desejas adquirir o que é verdadeiramente belo. [...] Mas, vivíssimo amigo, pensa um pouco sobre isso, para que não me atribuas valor demasiado ao pouco que valho. Os olhos do espírito (psique) só começam a ver melhor, quando os olhos do corpo se fecham!
Ferreira Netto (2010, p. 61) assim descreve este processo metafórico:
O que ocorre entre o amante e o amado? O amante é aquele que, sentindo que algo lhe falta, mesmo sem saber o quê, supõe em outro, o amado, algo que o completaria. O amado, por sua vez, sentindo-se escolhido, supõe que tem algo a dar, sem saber bem o quê. Mas, como o amado é também um ser falante e faltante, algo também lhe falta, como ao amante. Assim, o que ambos têm a dar é um nada, um vazio. E aquilo que o amado supõe ter para dar, não é, necessariamente, o que falta ao amante.
O amante não sabe o que lhe falta, o amado não sabe o que tem, um não-saber que é do inconsciente.
Na vida cotidiana, o panorama não é diferente. O amante dirige grande parte de sua libido para a pessoa amada, perdendo, com isto, vários outros objetos, e privando a pessoa amada também de muitos de seus desejos. O dia a dia nos mostra como os amigos se afastam daqueles que se apaixonam. Estas perdas geram mal-estar na relação, acusações, agressividade, ciúmes, ódio. O simples fato de as mulheres serem volúveis em tudo, e de os homens serem inflexíveis, desagrada a ambos. Mas acreditam que conseguirão reverter o quadro em seu parceiro. E a decepção vem rápida, visto que o domínio de um sobre o outro se situa no registro do imaginário.
Um dos maiores expoentes do Cinema Novo Alemão, Rainer Werner Fassbinder (1946-1982), falecido precocemente aos 36 anos, depois de ter já produzido 41 longas-metragens, um dos quais tinha 15 horas de duração, com o título de Berlin, Alexanderplatz, utilizou em seu último filme, Querelle, uma música cujo refrão repetia à saciedade uma frase do escritor Oscar Wilde: Todo homem mata o que ama. Narcísico ao extremo, ele confirmou o diagnóstico em si mesmo, através de uma overdose. Antes, havia declarado, segundo Ferreira Netto (2001, p. 82): “Eu quero ser para o cinema o que Shakespeare foi para o teatro, Marx para a política e Freud para a psicanálise”.
Oscar Wilde foi contemporâneo de Freud, inclusive em algumas ideias, já que Freud (1915, p. 161) postulou uma tendência inata do homem à maldade, à agressão, à destruição e à crueldade, provenientes do que chamou de ódio primordial: “O ódio, enquanto relação com objetos, é mais antigo que o amor. Provém do repúdio primordial do ego narcisista ao mundo externo com seu extravasamento de estímulos”. Assim, o sujeito detesta e tenta destruir todos os objetos que se apresentam a ele como fonte de desprazer, incluído o seio materno, cuja presença escapa de seu controle. Depois, tenta afastar os irmãos que lhe roubam parte da atenção materna. Finalmente, pelo ódio ao pai, na origem da lei simbólica, planeja matá-lo, visto que a presença da função paterna impede a criança de satisfazer o desejo pela mãe.
Lacan (1975, p. 134, 135) divide o ódio primordial freudiano em duas categorias: primeiro, o ódio-ciúme, nascido de um olhar envenenado, como na descrição autobiográfica feita por Santo Agostinho, quando contemplava, pálido, seu irmão menor sugando o seio da mãe, algo que tem a ver com o olhar e o pequeno outro; em segundo lugar, o ser-de-ódio: “Sobre esse tema do ódio, estamos tão sufocados por ele que ninguém percebe que um ódio, um ódio sólido, ele se dirige ao ser, ao ser mesmo de alguém que não é forçosamente Deus”. Este ódio, extrapolando o ciúme, independente do olhar ou da imagem, é fruto da suposição da existência de um ser, o grande Outro, cujo saber é inatingível e ameaçador para o gozo. É, por isso, violento.
Lacan (1975, p. 122) seguiu o pensamento de Freud, ao inventar o neologismo hainamoration, uma condensação de haine (ódio) e énamoration (enamoração), bem traduzido em português por outro neologismo amódio (amor e ódio). Acontece que a cultura (nosso braço direito) nos condiciona a declarar amor a tudo e a todos, censurando qualquer demonstração do ódio (sinistro) que nos habita o inconsciente.
E continuam atualíssimas as descobertas de Freud (1912, p. 166) sobre a distinção entre, por um lado, a impotência total e a impotência psíquica e, nesta segunda, entre amar e desejar. São os momentos em que o desenvolvimento da libido pode falhar:
“Deste modo, pode acontecer que a totalidade da sensualidade de um jovem se ligue a objetos incestuosos no inconsciente ou, para colocar em outras palavras, se fixe em fantasias incestuosas inconscientes. O resultado, então, é a impotência total que, talvez, mais tarde, se reforce pelo início simultâneo de um real debilitamento dos órgãos que realizam o ato sexual.
Necessita-se de condições menos graves para dar origem ao estado conhecido especificamente como impotência psíquica. Neste caso, o destino da corrente sensual não deve ser o de que sua carga total tenha de se ocultar atrás da corrente afetiva; ela deve ter permanecido suficientemente forte ou desinibida para assegurar vazão parcial à realidade.
[...] A atividade sexual dessas pessoas apresenta sinais muito evidentes, entretanto, de que não possui a força impulsiva psíquica total do instinto por trás dela. É caprichosa, facilmente perturbada, muitas vezes não propriamente executada e não acompanhada de muito prazer. Mas, acima de tudo, é forçada a evitar a corrente afetiva. A restrição, assim, se colocou na escolha de objeto. A corrente sensual, que permaneceu ativa, procura apenas objetos que não rememorem as imagens incestuosas que lhe são proibidas; se alguém causa uma impressão que pode levar à sua alta estima psíquica, essa impressão não encontra escoamento em nenhuma excitação sensual, exceto na afeição que não possui efeito erótico. Toda a esfera do amor, nessas pessoas, permanece dividida em duas direções personificadas na arte do amar, tanto sagrada como profana (ou animal). Quando amam, não desejam, e quando desejam, não podem amar”.
Em alguns momentos de sua obra, Freud evoca a atitude de alguns homens que amam a mulher representante da mãe santa, sem, contudo, desejá-la, enquanto desejam, sem amar, aquela que ocupa o lugar da mãe prostituta.
Estas reflexões tinham por objeto a psicologia masculina do amor. Só mais tarde é que Freud (1933, p.140) tenta se ocupar da feminilidade, confessando toda a sua frustração: “Através da história, as pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma da feminilidade”. Recorre à anatomia, com outra decepção: “aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia” (p. 141). A maior desilusão lhe vem da própria psicanálise: “também a psicologia é incapaz de solucionar o enigma da feminilidade”. Freud consulta, então, as mulheres psicanalistas que, em resposta, censuram o machismo preconceituoso com que os teóricos analistas tratavam do assunto. Tentando agradá-las, Freud comete uma deselegância: “Isto não se aplica às senhoras. As senhoras são a exceção; neste ponto, são mais masculinas do que femininas” (p.144). Isto faz lembrar a querela das histéricas, na época de Charcot, quando Freud, pelo contrário, teve lampejos perspicazes que mudaram o rumo da história. E ele confessa: “Em suma, fica-nos a impressão de que não conseguimos entender as mulheres” (p.148). Este texto sobre a feminilidade ainda guardava uma surpresa para as mulheres: “tornam-se vítimas da inveja do pênis” (p. 154). A trancos e barrancos, pelo menos, Freud vai levantando uma discussão importantíssima e ainda atual, sobre a questão da mulher, denunciando que falta alguma coisa na mulher, embora não veja com clareza que falta é essa.
Entretanto, ao final deste texto sobre a feminilidade, Freud consegue se redimir, fornecendo, talvez sem o perceber, a chave de todo o mistério. É quando descreve o complexo de Édipo no menino e na menina. Deixa claro que a ameaça de castração leva o menino a recalcar e até destruir o complexo. Com relação à menina, afirma que seu supereu é mais fraco, baseado no antigo argumento de que, sendo a mãe certíssima para o menino, a proibição lhe é inequívoca; já para a menina, o pai é sempre incerto e duvidoso, o que relativiza a força da lei e da interdição. Diz Freud (p. 159):
As meninas permanecem nele (o complexo de Édipo) por um tempo indeterminado; destroem-no tardiamente e, ainda assim, de modo incompleto. Nessas circunstâncias, a formação do superego deve sofrer um prejuízo; não consegue atingir a intensidade e a independência, as quais lhe conferem sua importância cultural, e as feministas não gostam quando lhes assinalamos os efeitos desse fator sobre o caráter feminino em geral.
Freud estava dando um salto qualitativo enorme, deslocando a ideia da falta, na mulher, do âmbito da biologia para o da cultura. A partir daí, devemos a Lacan a correção de rumo para explicar o enigma da mulher. Beneficiando-se com a noção de ‘gênero’ – em vez de sexo – proposta, em 1964, pelo psicanalista Robert Stoller (1925-1991), o qual, por sua vez, se inspirou no conceito freudiano de bissexualidade, Lacan abre os horizontes dizendo que os seres humanos não se dividem em dois sexos, mas em dois gozos.
Em seu seminário específico sobre a teoria dos gozos, Lacan (1975, p. 108), faz uma censura a Freud e apresenta a solução do enigma da mulher, fora do âmbito da anatomia, buscando na lógica seus argumentos. Diz ele:
O que eu abordo este ano é o que Freud deixou expressamente de lado, o Was will das Weib? O que quer uma mulher? Freud adianta que só há libido masculina. O que quer dizer isto? – senão que um campo, que nem por isso é coisa alguma, se acha assim ignorado. Esse campo é o de todos os seres que assumem o estatuto da mulher – se é que esse ser assume o que quer que seja por sua conta. Além disso, é impropriamente que o chamamos a mulher, pois, como sublinhei da última vez, a partir do momento em que ele se enuncia pelo não-todo, não pode se escrever. Aqui o artigo a só existe barrado. Esse A tem relação, e eu ilustrarei isso hoje para vocês, com o significante A enquanto barrado.
Quando Lacan diz que a mulher é não-toda, quer dizer que ela é não-toda fálica, não-toda castrada, seguindo o raciocínio freudiano, segundo o qual, devido à incerteza quanto ao pai, a proibição do incesto não a atinge totalmente, ao contrário do que acontece com o menino. Sendo assim, o desejo do menino pela parte mulher de sua mãe, o desejo de ser o falo dela, é totalmente recalcado, restando um desejo só pela mãe, agora metaforizado pela intervenção paterna. A isto Lacan chama de gozo fálico, comum ao homem e à mulher. Mas como a mulher é não-toda castrada, não totalmente atingida pela intervenção paterna, resta-lhe um outro tipo de gozo, que é o gozo feminino.
A utilização da lógica significa o seguinte. Já que os homens são atingidos pela proibição do incesto de modo inquestionável, e já que houve uma exceção com relação ao pai da horda primitiva, que não era castrado, tendo acesso a todas as mulheres, então esta exceção confirma a regra de que todos os homens são castrados. Assim eles formam um conjunto, denominado pelo significante ‘homem’. No caso das mulheres, como não houve a exceção citada acima, a regra da castração não se confirma, seu supereu é mais débil, elas não são inscritas totalmente no simbólico da lei, e não possuem um significante que as englobe num conjunto. Elas pegam carona no significante ‘homem’, que inclui os homens e as mulheres. Não tendo sido atingidas integralmente pela interdição do incesto, resta-lhes um outro gozo, suplementar, além do fálico, que é o gozo feminino. Pela lógica aristotélica, o artigo definido, no caso de ‘O homem’, é universalizante. Essa é a razão pela qual Lacan defende que não há A mulher (p. 98), com artigo definido, mas uma mulher, cada mulher. Sendo assim, o que falta à mulher é um significante que a nomeie, não é nada da ordem da anatomia. O avanço que Lacan vem trazer é no sentido de que, se o que falta para uma mulher é um significante, então estamos diante de uma questão cultural e não biológica, como pensava Freud. Assim, não se trata de uma questão insolúvel, pois existe a possibilidade de que isto venha a mudar, como já vem acontecendo há bom tempo. Outra grande mudança conceitual, já desde Freud, está no fato de que a definição de quem seja homem ou mulher independe totalmente dos dotes anatômicos.
Há mais de vinte anos, a psicanalista Mani Alvarez (Silva 1988, p.52) denunciou, em título expressivo: Mulher, substantivo masculino, a discriminação da mulher, feita pelas gramáticas, em várias partes do mundo, e que continua até hoje em plena vigência:
a) Sabe-se que o adjetivo concorda em gênero, número e grau, com o nome. Mas, se estão presentes os dois gêneros, a concordância se fará no masculino. Ex.: homens e mulheres idosos;
b) Os pronomes indefinidos, naturalmente, não têm gênero. Entretanto, a concordância nominal deve ser feita no masculino. Ex.: ninguém tão burro passaria por aqui.
[...] O uso genérico da forma masculina aponta significativamente para a supremacia do homem na linguagem. Dizemos ‘o homem’ para designar toda a humanidade; ‘brasileiro’, para designar o conjunto dos habitantes de um país; cidadãos etc. Se disséssemos, por exemplo, que ‘a mulher conquistou a lua’, não estaríamos nos referindo ao conjunto dos seres humanos.
Os melhores dicionários da Língua Portuguesa, no Brasil, já registram a forma feminina “presidenta”. Entretanto, na linguagem coloquial e, sobretudo, na mídia, continua predominando a forma masculina. A mulher continua invisível, meio fora da linguagem.
O argumento filosófico lacaniano, segundo o qual o homem, e não a mulher, faz conjunto, encontra sua evidência na vida cotidiana. Ferreira Netto (2010, p.137, 138) comenta:
O que é que as mulheres sempre falam dos homens, dentro e fora dos consultórios? Elas dizem que os homens são todos iguais: mentirosos, infiéis (já desde a mitologia), só pensam em sexo, são tontos, carentes, infantis e dependentes das mulheres. São objetivos, concretos, conservadores, secos, nem um pouco românticos. Insensíveis, não captam os sinais sutis que elas lhes enviam. Não percebem o vestido novo, o esmalte ou o último corte de cabelo, nem mesmo quando se trata de suas esposas. Além disso, são refratários à mudança, vestem-se todos iguais, calçam igual, cortam o cabelo igual. Isto é, fazem um ‘belo’ conjunto de todos iguaizinhos, fabricados em série.
E o que dizem os homens sobre as mulheres? Todos acham impossível compreendê-las (este verbo significa: apreender com, num todo, em conjunto). Os homens não sabem o que elas querem (nem Freud conseguiu saber), pois mudam de opinião com frequência (como a lua), não têm lógica, falam demais. Nenhuma quer se vestir, se pentear e nem calçar igual à outra. Lacan escreveu: quando a mulher diz “não”, é “sim”, e quando diz “sim”, é “talvez”. São imprevisíveis: La donna è mobile. Não é possível agrupá-las em nada. É cada uma por si. São criativas e fabricadas artesanalmente, por especialistas em estética.
[...] Já que o simbólico e a cultura não as acolhem carinhosamente, com seus significantes, elas também não se sentem tão comprometidas com os significados. Escapam da lei da linguagem. Preferem chorar, que é sua linguagem própria e insofismável, que desmascara a lógica masculina engessada. São intuitivas, sensíveis, têm muita “dor de cabeça”. E fingem muito, sobretudo entre elas mesmas. Recorrem muito aos artifícios das máscaras, da maquiagem, da moda, do brilho dos enfeites, procurando uma identidade. Muitas afirmam que não curtem a companhia de outras mulheres. Pois, além de tudo, são desunidas.
Muito eloquente é o título que Lacan deu para o seminário citado acima: Mais, ainda. Com isto ele responde à questão do ‘que quer uma mulher?’ Baseado na descoberta freudiana de que as histéricas são caracterizadas por um desejo sempre insatisfeito, do mesmo modo que os obsessivos se queixam de um desejo sempre impossível de conseguir, então o que querem homens e mulheres é que seus desejos fiquem mesmo insatisfeitos, isto é, desejam continuar desejando. Desejam mais, ainda. Mais, o quê? Ninguém sabe.
Atualmente, parece fácil responder à pergunta: o que quer uma mulher? Elas mesmas dizem que querem um cartão de crédito sem limites. Mas nunca se satisfazem com as dezenas de sacolas que trazem dos shoppings. Já dizia Freud que existem as equivalências simbólicas: cartão de crédito, pênis, bebê, fezes... Mas, em tudo isso, é sempre de outra coisa que se trata, isto é, o falo, o significante da falta, o desejo.
Outro refrão que recorre no Seminário XX (1975, p. 49), é que não há relação sexual. Para não nos alongarmos mais, fiquemos com o esclarecimento que Freud (1914, p. 116) já havia adiantado sobre isso: o amor é narcísico, só amamos a nós mesmos no outro.
Pior ainda, temos que concluir que o amor causa angústia. Lacan (1962, p.353) se pergunta de quê a angústia é sinal, E responde que “a angústia manifesta-se, sensivelmente, como relacionada de maneira complexa com o desejo do Outro. [...] indiquei que a função angustiante do desejo do Outro estava ligada a eu não saber que ‘objeto a’ sou eu para esse desejo”. No dito popular, amor e cegueira são sinônimos.
Lacan (1960, p.46) também concorda plenamente com Freud com relação à discordância no amor: “basta que se esteja nele, basta amar, para ser presa desta hiância, dessa discórdia”. Comentando o mandamento religioso de ‘amar ao próximo’, ambos insistem em que, se o amor ao próximo fosse possível ou fácil, não haveria necessidade de impor tal mandamento.
Entretanto, e apesar de tudo, o amor tem sua própria dinâmica, e move as pessoas no mundo inteiro, desde sempre. Já que Freud nos aconselhava a consultar os poetas, nunca é demais lembrar o poeta latino, Públio Ovídio Nasão, (1992) nascido no ano 43 a.C., que se destaca como um dos que melhor descreveram a Arte de amar. E se não fosse o amor, especialmente o amor de transferência, positiva ou negativa, a psicanálise não existiria. O analisante coloca o analista, ora na amável posição de mãe, ora na odiosidade de pai. A interpretação vai transmutar e ressignificar esses obscuros objetos de desejo.
Ao falar de transferência, em seu seminário, Lacan (1960, p. 52) arrematou a questão:
O amor é um vínculo contra o qual qualquer esforço humano viria se quebrar. Um exército feito de amados e amantes seria um exército invencível, na medida em que o amado, para o amante, tanto quanto o amante para o amado, são eminentemente suscetíveis de representar a mais alta autoridade moral, aquela diante da qual não se cede, aquela diante da qual não se pode ser desonrado. Esta noção alcança, no seu ponto extremo, o amor como princípio do sacrifício último.
E o casal de namorados chilenos? O rapaz estava algemado aos significantes. A mocinha, vendo aquelas tatuagens que nos deram o que falar, certamente estava tranquila, em sua intuição feminina, até mesmo divertindo-se com a estética do desenho, com seu outro gozo, quase um êxtase místico.
Bibliografia
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Este artigo está publicado no livro “Semiótica Psicanalítica, Clínica da Cultura”, de Lúcia Santaella e Fani Hisgail (Org.), Editora Iluminuras, 2013, São Paulo, S.P.