Clinica social com adolescentes
Psicóloga e Psicanalista
Coordenadora do Núcleo da Associação Livre em Goiânia
Separar-se da família torna-se uma tarefa com que todo jovem se defronta,
e a sociedade frequentemente o auxilia na solução disso através dos ritos de puberdade e de iniciação.Freud
A Psicanálise pura é a Psicanálise como deve ser, tal como ela, práxis e doutrina da psicanálise propriamente dita. A psicanálise aplicada corresponde à psicanálise tal como ela é efetivamente aplicada ao sintoma prevalecendo a preocupação terapêutica. É decisivo que a psicanálise aplicada à terapêutica não ceda de seu rigor, já que sua aplicação será melhor quanto forem as provas do engajamento do praticante na psicanálise pura.
No Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris de 21 de junho de 1964, Lacan nos ensina que a psicanálise pura é a psicanálise didática,que ele denominou de psicanálise em intensão. Na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola: “Para introduzi-los nisso [numa possível articulação da hiância, do status de impotência, de uma falha, que retorna lançando sua sombra sobre a prática da psicanálise] eu me apoiarei nos dois momentos da junção do que chamarei, neste arrazoado, respectivamente, de psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo, e psicanálise em intensão, ou seja, a didática, como não fazendo mais que preparar operadores para ela”. (Outros Escritos p. 251).
A nossa pretensão aqui é situar a psicanálise aplicada no serviço de saúde mental como um discurso entre outros, mas ao mesmo tempo diferente das psicoterapias.
É dentro do âmbito da saúde mental, que o Centro de Atenção Psicossocial, CAPS Girassol, desenvolve um trabalho com crianças e adolescentes usuários de álcool e/ou outras drogas. Os CAPS seguem um modelo de normalização, que tem como objetivo o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício de direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Cabe ao psicanalista, mesmo nesse contexto, como parte da equipe multidisciplinar, sustentar questões que concernem à sua ética, à clínica do sujeito, à lógica da diferença, à singularidade do sujeito com relação ao seu desejo e gozo e, à construção do caso clínico, em favor dos adolescentes.
Cabe-nos, então, interrogar a psicanálise sobre: Como poderíamos, a partir de seu referencial teórico, compreender a adolescência e suas relações com as drogas e/ou com a delinqüência? O que pode um analista numa instituição de saúde mental diante de tais sintomas que produzem atos?
O declínio da referência paterna, acompanhado de modificações na família, e dos ideais que ligavam libidinalmente o sujeito a seu ideal do Eu, deixa os sujeitos sem uma referência única que oriente o seu desejo passando a perseguir valores que remetem unicamente ao gozo: ter dinheiro, ter poder, ter fama, ter um corpo perfeito, ser eternamente jovem. O sujeito entrega-se às toxicomanias, aos acidentes graves, à agressividade e à violência, não hesitando nem mesmo em colocar em risco, não somente a sua própria vida, mas, a do outro.
Se outrora o sujeito podia se guiar e se sustentar em um ideal, às custas de restrições e privações da satisfação, hoje busca desenfreadamente o objeto, acreditando que a satisfação possa ser alcançada, o que gera, consequentemente, uma insatisfação e a procura sem esperança por mais um objeto como uma manobra para se ver livre da impossibilidade de satisfazer o desejo.
É nessa época, chamada por J. A. Miller de hiper-moderna, que tem como paradigma o I < a, significando que o Ideal é menor do que o mais-de-gozar, que vemos surgir a angústia produzida pela falta de referências simbólicas e a tentativa de se refazer o todo para tratar do insuportável da falta de garantia do gozo. Na atualidade é a cultura que assume aspectos superegóicos, obrigando os sujeitos a gozar. O crescente número de objetos de consumo chega a todos, como uma maneira de suprir o enorme mal-estar produzido pela falta de perspectivas de mudanças sociais.
A maioria dos adolescentes em tratamento no CAPS Girassol vive em um ambiente em que a inexistência ou a deficiência de espaços públicos de cultura, esporte e lazer é fato marcante. Originários de famílias desestruturadas, em estado de pobreza e às vezes até miséria, sem oportunidades de emprego, desde cedo acostumam-se a conviver com a violência, muitas vezes de seus próprios pais, e em alguns casos, com o abandono.
Poderíamos dizer que os adolescentes que nos procuram para tratamento no CAPS Girassol, quando colocados frente ao Outro da sociedade, da polícia, da justiça, são interrogados quanto ao que quer esse Outro, frente à sua existência e ao seu gozo e, assim, se vêem angustiados. Apresentando, na demanda que fazem ao serviço, o medo, muitas vezes, da morte e da violência que podem sofrer. Mas, nem sempre, como pode atestar Freud, a angústia com relação à existência e ao gozo é vivida como tal.
Em seu “Mal-estar na civilização”, publicado em 1930, Freud nos diz: “Aqui, talvez, nos possamos alegrar por termos assinalado que, no fundo, o sentimento de culpa nada mais é do que uma variedade topográfica da ansiedade; em suas fases posteriores, coincide completamente com o medo do superego. (...) Por conseguinte, é bastante concebível que tampouco o sentimento de culpa produzido pela civilização seja percebido como tal, e em grande parte permaneça inconsciente, ou apareça como uma espécie de mal-estar, uma insatisfação, para a qual as pessoas buscam outras motivações”.
É frequente o uso da droga em correlação com atos infracionais entre jovens, em que onde um fazer com o corpo substitui o dizer, o que poderia ser uma maneira patológica de lidar com o impasse do uso do fantasma na adolescência, conforme abordaremos a seguir.
A puberdade interessa à psicanálise por ser um momento onde se decide um novo uso do fantasma, por ser uma porta aberta a uma nova dimensão do gozo. Não implica nem uma continuidade, nem uma reduplicação de mudanças pulsionais que marcam o tempo da infância. Poderíamos dizer que é no tempo da adolescência que uma prova é posta ao sujeito, um momento de verificação retroativo do que o tempo lógico da infância construiu na dialética da alienação/separação. Uma época de encontro com a sexualidade onde se atualiza retrospectivamente a impossível complementaridade entre os sexos.
O sujeito se vê tocado na castração, a exigência pulsional reatualiza a interdição do Gozo do primitivo objeto de amor, assim, o adolescente põe em marcha as vias possíveis da recuperação do Gozo, possibilitando ao jovem os sonhos de amor, antes propriamente de ser colocada à prova a fantasia, que deverá conciliar a satisfação obtida até então com esse outro gozo sexual que implica o corpo do outro.
No melhor dos casos o desejo guiará o sujeito na busca de um objeto de amor, o objeto apto para o gozo. No entanto, ali onde a fantasia impelida frente ao encontro não puder situar o gozo, aparecerá o sintoma como suplência da inexistência da relação sexual.
Hoje, os significantes que regulam a passagem da adolescência ao mundo do adulto não são os mesmos. Vivemos em uma época onde os ritos de uma sociedade de consumo parecem não auxiliar o novo uso do fantasma. O que vemos são jovens inscrevendo no corpo as marcas das tatuagens, dos piercings, das plásticas...
O mal-estar específico de nossos dias mostra a irrupção de um gozo que caracteriza a puberdade, um gozo que evita a função da fala, que aliena o corpo ao campo do Outro por vias imaginárias, sem mediação fálica, como no caso da droga em que o gozo entra diretamente no corpo, sem a mediação simbólica da demanda de amor.
Para Freud: “Nas crianças delinquentes, criadas sem amor, a tensão entre ego e superego está ausente, e a totalidade de sua agressividade pode ser dirigida para fora. À parte um fator constitucional que se pode supor presente, é possível dizer, portanto, que uma consciência severa surge da operação conjunta de dois fatores: a frustração do instinto que desencadeia a agressividade, e a experiência de ser amado, que volta a agressividade, para dentro e transfere para o superego.” (O mal-estar na civilização, 1930, p.154). Poderíamos, então, concluir, a partir de Freud, que quando a criança é negligenciada quanto ao amor, o sentimento de culpa não se presentifica em sua vida, o que possibilita que sua agressividade seja dirigida para o mundo externo. Seria a operação conjunta da frustração do instinto e da experiência de ser amado o que permitiria o desencadeamento da agressividade e possibilidade de seu retorno para o ego, de onde ela proveio, mais exatamente, parte do ego, o superego, que ao se colocar contra o ego sob a forma de consciência, põe em ação contra este a mesma agressividade rude que ele teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos criando uma tensão chamada de sentimento de culpa e que se expressa como uma necessidade de punição. Neste caso apenas a intenção de praticar o ato é suficiente para que opere a culpa. É exatamente a tensão entre ego e superego que está ausente na delinquência.
As situações vividas por esses adolescentes, em seu contexto familiar, são em si mesmas patológicas. O que observamos na nossa prática é que o sujeito, na maioria dos casos, transgride a lei, mas não podemos deixar de mencionar que o uso da droga pode ser um episódio pontual na vida de alguns adolescentes. Percebemos que para estes adolescentes o papel da família em refrear o gozo, transmitir a castração, está completamente enfraquecido. Se os ideais na atualidade estão em crise, poderíamos dizer que, para eles, não apenas o laço social e o amor são desvalorizados, mas, sua própria existência. Entregue a um gozo mortífero, a passagem ao ato, é muitas vezes suicida. Como eles costumam dizer: “quem está nessa vida sabe que vai morrer mais cedo”.
É quando o adolescente se vê abalado subjetivamente ao ter que responder pelo seu ato que ocorre uma inversão na lógica utilizada até então: é pedido a ele que fale, que se explique. É nesse momento que se abre toda a possibilidade da intervenção por parte do analista no acompanhamento que faz, seja, individualmente, ou em grupos, quando são encaminhados ao serviço, permitindo que fale a um Outro, que exista enquanto sujeito, instigando uma elaboração simbólica de seu modo de vida, esperando que algo possa escapar-lhe, para aí, tentar implicá-los em suas queixas e embaraços. Não cabe ao analista, na instituição, tomar a inserção social como seu principal objetivo, a inserção é um resultado que pode acontecer por acréscimo.
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