A Mulher e o Monoteísmo
Se Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, há uma face feminina em Deus. Então, porque o monoteísmo excluiu a mulher de sua história? Nesse artigo o autor se propõe analisar como isso se deu ao longo do tempo.
O monoteísmo e o patriarcado são caracterizados por uma generalizada repressão sexual e exclusão da mulher. As religiões controlam o comportamento das pessoas e provocam uma repulsa sexual que se transforma em sintomas neuróticos. A psicanálise revolucionou o objetivo da sexualidade, introduzindo o princípio do prazer, em substituição ao primado da reprodução, favorecendo a liberação feminina e sua visibilidade na sociedade.
Embora perdido no tempo e pouco conhecido, o período do matriarcado é caracterizado, em linhas gerais, pela liberdade (promiscuidade?) sexual - haja vista a figura do filho amante - e pelo politeísmo, quando deuses e deusas conviviam harmoniosamente. Como não se conheciam os mecanismos da fecundação, a mulher dominava a cena, ficando o homem em segundo plano. Quanto ao monoteísmo, já possuímos dados mais concretos. Segundo a Enciclopédia Delta, o monoteísmo surgiu no Egito, em 1370 a.C., quando o rei Amenófis IV subiu ao trono. Ele e sua família cultuavam o sol, chamado de Áton, e decidiu mudar o próprio nome para Aquenáton, que significa filho de Áton, transformando-se assim em um novo deus. Obrigou o povo a cultuá-lo e proibiu o culto a qualquer outra divindade. A partir daí, os egípcios passaram a chamar seu rei de faraó.
Esse foi um movimento de cunho eminentemente político, sem conotação religiosa, cujo objetivo era controlar o poder, a propriedade e a família.
Na mesma época, surge Moisés, hebreu. O faraó ordenou a matança das crianças do sexo masculino, nascidas dos judeus, no Egito. Uma mulher da tribo de Levi acomodou seu filho em um cesto e lançou-o no rio Nilo, tentando salvá-lo. Justo a filha do rei recolheu a criança e lhe deu o nome de "salvo das águas". Moisés interpretou o fato como chamado de Deus para uma missão. Adotou o monoteísmo, já agora com um cunho eminentemente religioso. Adulto, depois de cometer um assassinato, escondeu-se no deserto, quando Deus lhe aparece, ordenando que livrasse seu povo da escravidão imposta por Aquenáton. Começa o movimento conhecido como Êxodo.
Duvidando da palavra de Deus, Moisés foi condenado a não entrar na terra prometida, mas deu aos hebreus o decálogo, uma legislação civil e religiosa. Um dos novos mandamentos, "honrar pai e mãe", destaca a figura do pai, ausente no matriarcado. Assim, o monoteísmo se caracteriza como nova ordem social, com um só deus, um só pai, uma família. Agora é a mulher que passa a segundo plano, porque todo o poder se concentra na figura do paterfamilias, palavra que destaca, por um lado, o pai, por outro, o conjunto da mulher, filhos, criados, servidores e fâmulos, de onde vem a palavra família.
Começa aí o controle da propriedade e da sexualidade das pessoas, sobretudo da mulher, com sua nova missão de cuidar da família. Ingressamos, assim, no patriarcado. Recentemente, Freud cria o mito do "assassinato do pai da horda primitiva", que teria acontecido na calada da noite dos tempos, quando novo conceito de família emergiu com a formalização da lei simbólica, decorrente da proibição do incesto (Freud, 1913). No decorrer da história, até hoje, três grandes religiões adotaram o monoteísmo: o judaísmo, o islamismo e o cristianismo, com duas principais características comuns: a repressão sexual generalizada e a submissão da mulher.
Há duas versões etimológicas para a palavra "religião". A mais usual é derivada do verbo latino re-ligare, e, a outra, de re-legere. A primeira condiz melhor com o conceito de religiosidade, espiritualidade, transcendência, psique. Decorre do confronto arcaico do ser humano com a morte, numa tentativa de se re-ligar com Deus. A segunda aplica-se às religiões institucionalizadas, enquanto fazem uma re-leitura hermenêutica ou exegética de determinados textos sagrados, com o fim de estabelecer preceitos e condutas morais para seus seguidores.
JUDAÍSMO
No judaísmo, o deus único leva o nome de Javé. A Torah é seu texto sagrado básico. Os fiéis são rigorosos na observância dos rituais, dos jejuns e na maneira estereotipada de se vestirem. Por isso, quando o judeu S. Freud comparou a religião, em geral, com a neurose obsessiva, referia-se mais ao judaísmo e islamismo do que ao cristianismo (Freud, 1907).
No judaísmo, a mulher tem a destacada missão da procriação, para perpetuar não só a espécie, mas o judaísmo, segundo o preceito bíblico do "crescei e multiplicai-vos", e para manter o privilégio de ser um povo escolhido por Deus. Ainda hoje, a mulher não pode ocupar o mesmo espaço dos homens na sinagoga. E, somente nesses últimos anos, surgiu a primeira mulher rabina no mundo, exatamente no Brasil. Nos Estados Unidos, grupos judaicos não ortodoxos começam a aceitar o rabinato das mulheres.
Os preceitos bíblicos sobre a menstruação são bem conhecidos. Antigamente as mulheres tinham que sair de casa, quando menstruadas, alojar-se em comunidades próprias para isso, porque eram consideradas impuras, não podendo conviver com outras pessoas, para não contaminá-las. Ao voltarem para casa, mostravam ao marido uma esponja absorvente limpa, provando que já não estavam impuras. A impureza não era devida só ao sangue menstrual, mas ao fato de a mulher ter desperdiçado o óvulo daquele mês, em vez de fecundá-lo. Isso era um pecado que elas tinham de purificar diante de Deus, no recolhimento.
Para os homens, no mesmo contexto, a grande proibição era o onanismo (coito interrompido), ou a masturbação, que os tornavam pecadores devido ao desperdício de milhões de espermatozóides. Nessa lógica, a masturbação feminina deveria ser permitida. Entretanto, a vida sexual dos casais é permissiva, a ponto de provocar censura da parte dos cristãos.
Capítulo à parte cabe à mãe judaica, que, com a superproteção aos filhos, tornou-se assunto de anedota. Portanto, no judaísmo a mãe é realçada, enquanto a mulher é anulada. Freud ponderou que os próprios judeus, ao se apresentarem como o povo escolhido, uma raça diferenciada, granjeiam contra si, inconscientemente, a antipatia de todos os outros povos do mundo (Freud, 1939). Eles continuam esperando o Messias, de modo que Jesus e Maria não têm importância em sua teologia e em seu culto.
ISLAMISMO
O islamismo, surgido na Arábia, no século VII, é caracterizado, de modo geral, pelo fanatismo religioso, mesmo para os grupos não fundamentalistas. O Alcorão, palavra de Alá, transmitida a Maomé pelo Arcanjo Gabriel, contém os dogmas e os preceitos morais dos muçulmanos. Os fiéis têm que rezar cinco vezes por dia, interrompendo suas atividades, e passam todo um mês fazendo jejum. Até recentemente, as mulheres eram proibidas de frequentar a escola, para não terem acesso ao Alcorão, interpretado segundo a releitura moralista dos homens. Elas rezam em lugares diferentes dos homens, escondem o corpo em público, usando a burca e o véu, para não serem cobiçadas ou molestadas.
Quando a mulher sai em companhia do marido, deve andar atrás dele, guardando certa distância. Em alguns países muçulmanos, ela é proibida de dirigir automóvel. A bárbara extirpação do clitóris e dos lábios vaginais em meninas e adolescentes é ainda praticada em algumas comunidades islâmicas, um procedimento que visa a impedir o prazer sexual. Quanto ao homem, pode casar-se até com quatro mulheres, desde que tenha dinheiro suficiente para sustentá-las. Isso implica em que muitos homens, com pouco saldo bancário, não encontrem mulher para o matrimônio, o que torna o homossexualismo, entre eles, uma opção forçada. A mulher torna-se, assim, uma mercadoria a ser comprada por dinheiro ou trocada por ouro.
A punição para os casos de adultério é ainda o apedrejamento, como no tempo de Cristo, e o roubo implica o corte da mão do culpado.
Jesus não é considerado filho de Deus, e Maria é simplesmente uma mulher importante.
A mulher é vista mais como esposa, a serviço do harém E os homens ou mulheres-bomba acreditam que receberão bela recompensa por oferecerem suas vidas a Alá. No século VIII, surgiu o Sufismo, movimento espiritual e místico, influenciado pelos eremitas cristãos, resgatando o ascetismo do próprio Maomé. A palavra sufi significa lã, referência ao tipo de roupa que homens e mulheres usavam então.
CRISTIANISMO
Em comparação com o judaísmo e o islamismo, o cristianismo tem, no geral, uma atitude mais liberal e humana para com a pessoa. Seu texto sagrado básico, o Novo Testamento, é de uma beleza e de uma poesia ímpar. O grande problema é a interpretação moralista e repressora que os teólogos e eclesiásticos, em geral, lhe deram, como forma de dominação, especialmente no Catolicismo, em que a tradução oficial da Bíblia sofreu várias alterações para justificar interesses escusos da hierarquia. Por exemplo, no Gênesis, a palavra hebraica tsella, que significa ‘ao lado do peito’, foi traduzida por costela, para indicar a superioridade de Adão sobre Eva. Razão pela qual a discriminação da mulher continua sendo um tabu em pleno século XXI.
Três grandes correntes se organizaram em torno dos ensinamentos de Cristo: a Igreja Católica Romana, A Igreja Católica Ortodoxa Oriental e a Igreja Evangélica, cada qual fazendo uma leitura diferente do mesmo texto sagrado.
Na Igreja Católica Romana, os dogmas são considerados revelação divina, um mistério. Não podem ser contestados, mesmo que não possam ser compreendidos. Aliás, foi o grande Padre da Igreja, Tertuliano (séc. III) quem fez a famosa afirmação: "Creio porque é absurdo". Entretanto, alguns dogmas como da Santíssima Trindade, Imaculada Conceição de Maria, Maternidade divina de Maria, Virgindade de Maria e Assunção de Maria aos céus, levantam dúvidas, polêmicas e divergências mesmo entre os teólogos de maior renome.
Para dar só um exemplo ridículo, ao explicarem a virgindade de Maria durante e depois do parto, alguns teólogos alegaram que Deus interveio com um milagre, transformando o corpo de Jesus, na hora de nascer, em um fio fino como um barbante, para poder atravessar o hímen de Maria, sem rompê-lo, mostrando como é importante para a mulher manter intacta essa pelezinha, prova de sua integridade e pureza.
De acordo com Uta Ranke (1996), atualmente considerada a maior teóloga ecumênica do mundo, primeira mulher a conquistar uma cátedra em teologia, numa universidade oficial alemã, o grande mentor do pessimismo sexual católico foi Santo Agostinho (séc. IV). O mais célebre dos Padres da Igreja casou-se aos 17 anos, teve um filho, e viveu plenamente a sexualidade. Sua mãe, Santa Mônica, dedicou a vida inteira à conversão do filho. Aos 29 anos, Agostinho abandona a esposa e dedica-se à religião, de corpo e alma. A partir daí, com relação ao sexo, coloca-se no extremo oposto, condenando todo tipo de prazer. Como teólogo, defendeu a tese de que o pecado original, desde Adão até nós, é transmitido pela relação sexual, ou melhor, pelo prazer sexual. Qualquer prazer sexual é pecado. Daí que Maria só podia ser mãe de Jesus se não tivesse relação sexual.
Outro dogma, da Imaculada Conceição, afirmando que Maria foi concebida por Ana e Joaquim, através de um ato sexual, mas sem pecado original, teve que esperar até 1854 para ser promulgado, época em que a teoria de Santo Agostinho já não tinha aceitação. Tais teorias, elaboradas por uns poucos clérigos obrigados ao celibato compulsório, são impostas à crença dos fiéis, considerados incapazes de entender os grandes mistérios.
Mesmo teólogos conhecidos, como Alberto Magno e Tomás de Aquino, esquecidos de que já estavam no Novo Testamento, retomaram o tabu da menstruação, considerando pecado mortal a relação com uma mulher menstruada. São Jerônimo e outros consideraram venenoso o sangue menstrual e concluíram que, quando a mulher tem relações sexuais durante a menstruação, pode gerar filho leproso, epilético, hidrocefálico, aleijado, cego, idiota, possesso do demônio, ou nascer morto.
O sangue do parto era considerado ainda mais impuro que o menstrual. Após o parto, a mulher esperava quarenta dias para voltar a frequentar a igreja, passando pela cerimônia de purificação. Inclusive Maria teve que se submeter a isso. Se a mulher morresse antes da purificação, tinha que ser enterrada num lugar separado, do mesmo modo que se morresse antes do parto, porque aí o feto morreria sem batismo.
No Novo Testamento quase não há referência ao sexo. Isto não impede uma batalha inglória entre católicos e protestantes, sobre a suposta vida sexual de Maria e José. Os primeiros defendem a virgindade perpétua de Maria, com base na tradução católica do Novo Testamento (Edição Pastoral, da Sociedade Bíblica Católica Internacional, Ed. Paulus, SP), Evangelho de São Mateus, I, 24- 25: "Quando acordou, José fez conforme o Anjo do Senhor havia mandado: levou Maria para casa, e, sem ter relações com ela, Maria deu à luz um filho. E José deu a ele o nome de Jesus".
Os mesmos versículos, na clássica edição protestante, traduzida por João Ferreira de Almeida (Imprensa Bíblica Brasileira, RJ), rezam: "E José, despertando do sono, fez como o Anjo do Senhor lhe ordenara. E recebeu sua mulher, e não a conheceu até que ela deu à luz um filho, o primogênito, e pôs-lhe por nome Jesus". A inclusão da palavra "primogênito" supõe que houve outro ou outros filhos, já agora fruto de relações sexuais.
Em Mateus 12, 46, há referência a "irmãos de Jesus", que os protestantes interpretam como sendo irmãos de sangue, enquanto os católicos vêem aí um sentido metafórico de simples parentesco, ou da comunidade cristã em geral, como o próprio Jesus afirmou, no versículo 50: "pois todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está no céu, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe". Exegeses à parte, torna-se evidente a manipulação do texto sagrado, com re-leituras contraditórias que confirmam teologias preconcebidas. Há exploração ideológica: Maria é destituída da feminilidade, num caso, e da santidade, no outro.
E Jesus? Seria sexualmente ativo? Que respondam os voyeuristas de plantão. Mas, no episódio da mulher adúltera, a atitude de Cristo foi de extrema compreensão, não condenando a pecadora que estava prestes a ser apedrejada. Com outras mulheres, como consta em Lucas 8, 3, Cristo teve excelente e inusitado convívio. Aliás, por falar em adultério, nos cinco primeiros livros da Bíblia, o Pentateuco, ou Torah, encontramos uma legislação bastante explícita, que pune de morte tanto o homem quanto a mulher adúlteros (Levítico 20, 10 e Deuteronômio 22, 22). Já no início do Cristianismo, a interpretação corrente era de que só a mulher pega em flagrante seria penalizada, como vemos em João 8,3. Para o homem, era normal.
Os leigos não dão importância às filigranas das especulações teológicas, sobretudo no Brasil, devido ao sincretismo religioso que coloca no mesmo barco a Virgem Maria e Iemanjá. A presença de outros cultos não altera a vida dos fiéis. A preocupação com o rigor do monoteísmo é daqueles que detêm o poder nas instituições religiosas, porque isso garante seu domínio.
O grande problema do cristianismo é a exclusão da mulher e da mãe no triângulo da Santíssima Trindade. Este dogma tem duas versões: a oficial atual, popular, afirma que há um só Deus em três pessoas distintas, Pai, Filho e Espírito Santo, enfatizando o aspecto trinitário, com três elementos masculinos. Mas a figura do Espírito Santo sofreu estranha metamorfose no decorrer da história, dependendo das traduções da Bíblia. No original hebraico, a palavra rüah (espírito) é do gênero feminino. No grego, pneuma é neutro. Em latim, spiritus é masculino. Nas demais línguas latinas, como o português, é do gênero masculino. Com três alternativas, por que prevaleceu o masculino?
A segunda versão do dogma é mais sofisticada e, por assim dizer, psicanalítica, defendida por teólogos contemporâneos mais arejados, para os quais o Pai vê sua imagem refletida como num espelho, que é o Filho, e o amor do Pai a essa imagem é o Espírito Santo, focalizando mais o aspecto narcísico e unitário de Deus. Nas duas versões, o Filho se encarnou. Entretanto, há uma passagem curiosa nos Evangelhos, Lucas 3, 21-22, relatando o batismo de Jesus, onde consta que o Espírito Santo apareceu "sob forma corporal, tal como uma pomba". O autor, com formação médica, sabia o que estava dizendo, que o Espírito Santo também se encarnou, tomou um corpo, como Jesus. Vale ressaltar que, segundo as melhores traduções da Bíblia (de Jerusalém, Vulgata e Maredsous), há consenso de que se trata de uma pomba, em português, peristerás, em grego,columbae, em latim, une colombe, em francês, una paloma, em espanhol, sempre no feminino, (dove, em inglês, é neutro), quando os masculinos correspondentes seriam: pombo, peristerou, columbi, pigeon, palomo. Não indicaria isso a presença do feminino no triângulo? A teologia católica oficial nunca se empenhou em tirar daí alguma consequência.
Para compensar a exclusão do feminino, e por pressão dos fiéis, a partir do século IV foi dado um destaque especial ao culto da Virgem Maria, o que levou a Igreja a promulgar o dogma da Maternidade Divina. Só que, tanto o dogma da Santíssima Trindade, quanto o culto mariano provocaram cisões e separações que se tornaram irrecuperáveis dentro da comunidade cristã. Há uma ambiguidade em torno da figura de Maria. Por um lado, é-lhe dado um destaque que a eleva muito acima das mulheres comuns, com prerrogativas e privilégios que nenhuma mulher conseguiu na história da humanidade. Por outro, ela é colocada abaixo de Deus, girando numa órbita própria entre o céu e a terra, sem ter lugar definido na ordem da criação. Em resumo, Maria é uma 'semideusa", sem o status das deusas do politeísmo, e uma mulher que não veste o modelito das mulheres do monoteísmo.
A exclusão da mulher pela Igreja católica fica também evidente na proibição de participar do ministério sacerdotal, ao contrário do que acontecia no matriarcado, quando o culto era dirigido pelas sacerdotisas. Também com relação ao homem, ela ocupa um lugar inferior e sem voz ativa. Na primeira Carta aos Coríntios 14, 34-35, São Paulo diz: "Que as mulheres fiquem caladas nas assembleias, como se faz em todas as igrejas dos cristãos. (...) Se desejam instruir-se sobre algum ponto, perguntem aos maridos em casa". Até bem recentemente, a liturgia romana do casamento incluía a leitura do seguinte texto da Carta aos Efésios 5, 22: "Mulheres, sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor. De fato, o marido é a cabeça da sua esposa, assim como Cristo, Salvador do corpo, é a cabeça da Igreja. E assim como a Igreja está submissa a Cristo, assim também as mulheres sejam submissas em tudo a seus maridos". Esta citação não combina com o espírito do Novo Testamento, mas se explica pelo fato de que Paulo era judeu e, como já foi dito, a mulher judia é discriminada. Mas o fato de a Igreja, mesmo assim, ter escolhido essas frases, é sintomático. Também geograficamente havia lugares diferentes para homens e mulheres nas naves das igrejas.
Com relação ao casamento, a Igreja Católica é a mais intransigente entre as instituições cristãs. Proibido aos bispos, padres e freiras, para os fiéis só é permitido uma vez. O divórcio não é admitido, porque o casamento é indissolúvel.
O catolicismo incorporou, disfarçada e não confessadamente, algumas ideias típicas do paganismo matriarcal, como no dogma da Maternidade divina de Maria. A antiga crença de que a mulher engravidava por ação de algum espírito desconhecido, reaparece agora no Espírito Santo que desbancou o pacato São José.
Teólogos famosos realçaram a tese de que a mulher é inferior ao homem, como disse Santo Agostinho (Uta, 1996). Quase um século depois (1274), Santo Tomás de Aquino decide integrar, ao pensamento cristão, os princípios filosóficos de Aristóteles (322 a.C.), considerado o verdadeiro representante da Filosofia Perene, que, no livro Da geração dos animais, lançou a famosa teoria do homúnculo: o espermatozóide já contém o homenzinho completo, como embrião, dispensando a parceria do óvulo. A mulher assim não participava da geração, a não ser alimentando aquele pequeno ser que foi depositado em seu útero. Era a vingança em cima do matriarcado, onde o homem é quem não tinha participação na geração. Aristóteles ensinava também que o embrião masculino recebia a alma quarenta dias após ser implantado no útero, ao passo que o feminino demorava oitenta dias (ibid.). Daí a concluir que a mulher é inferior ao homem era só uma questão de "bom senso".
Outra prova disso aconteceu quando o celibato foi imposto "goela abaixo" e a contragosto do clero e religiosos. Tratando-se de medida disciplinar, nunca foi totalmente acatada, mesmo nas altas esferas clericais. Foram feitas várias tentativas para consolidá-la, como no Concílio de Elvira (ano 303), pelo Papa Sirício (399), Concílio de Latrão (1139), Concílio de Trento (1563) e Código de Direito Canônico (1800). Além da desvalorização e repressão à sexualidade, o celibato dos padres foi uma declaração explícita de que a mulher era um empecilho e estorvo para o ministério. E se a mulher não pode nem conviver com um padre, exercer o ministério, nem pensar.
Após a imposição do celibato, alguns santos, como o português Antônio de Pádua, passaram a sofrer tentações horríveis, tipo pesadelo ou delírio, em que apareciam lindas mulheres nuas, sedutoras, que os deixavam enlouquecidos. Grandes pintores gravaram, em seus quadros, detalhes desse misto de desejo e culpa.
Já que a sexualidade tem como único objetivo a procriação, os padres e religiosos não podem casar-se, porque teriam de perder tempo com a educação dos filhos; e a mulher, tendo que criar filhos, não teria disponibilidade para o ministério. Por volta do século IV, surgiu a criativa expressão "adultério com a própria esposa", quando o sexo fosse praticado sem fins de procriação, só por prazer. Nessa perspectiva, todo ato sexual, que não leva à procriação, é considerado perversão moral, o que se transformou num prato cheio para as religiões, a Psiquiatria e o Direito elaborarem extensas e minuciosas listas de perversões.
Um episódio anedótico sobre a repressão sexual aconteceu no século XVII, quando o bispo de Genebra, Francisco de Sales, no livro Introdução à vida devota, aconselhou os casais a tomar como modelo de vida sexual os elefantes, que só fazem sexo uma vez a cada dois anos. Essa ideia foi tirada do naturalista romano Plínio, o Velho, que morreu na erupção do Vesúvio, em 79.
A maior mancha do catolicismo estava ainda para acontecer. Foi a Inquisição, uma espécie de nazismo eclesiástico, do século XII ao XIX. A repressão à mulher sai das especulações teóricas e vai a campo para assassinar milhares delas, sem direito à mais elementar defesa, sob acusações falsas ou simples suposições de bruxaria e heresia. Tudo porque elas detinham certo saber, ou porque se permitiam viver um pouco mais livremente aquela sexualidade que tanto incomodava os carrancudos e recalcados inquisidores.
Tais abusos não poderiam ficar impunes. O cristianismo foi se tornando uma panela de pressão prestes a explodir. A primeira bomba foi o dogma fundamental da Santíssima Trindade. Com uma matemática difícil de manejar, três é igual a um, nem monoteísmo nem politeísmo, e com uma biologia mais misteriosa, onde um pai produz um filho e um espírito, com a total exclusão de uma mulher, os neurônios teológicos começaram a arder. E surge a primeira divisão profunda, o grande Cisma do Oriente ou Cisma Grego.
Igreja Católica Ortodoxa Oriental. A primeira grande cisão no cristianismo foi devida a motivos políticos, como o poder absoluto do Papa de Roma sobre toda a Igreja, motivos disciplinares, como a proibição do casamento aos clérigos e, sobretudo, motivos religiosos e teológicos ligados ao dogma da Santíssima Trindade. O dogma fundamental do Cristianismo começa a ser posto em discussão em 863, pelo patriarca Fócio. Com o agravamento da divergência, em 1054, o patriarca bizantino Cerulário excomungou o Papa Leão IX, após ter sido excomungado por ele. Estas excomunhões perduraram até 1966, quando foram retiradas de ambas as partes. Curioso é que essas duas palavras, patriarca (de origem latina, mas usada na igreja grega) e papa (de origem grega, mas usada na igreja romana), têm a mesma etimologia que é pai, o que mais uma vez esclarece sobre a luta de poder masculino que o patriarcado representa.
O grande ponto de discórdia dessas duas igrejas católicas é sobre a terceira pessoa da Santíssima Trindade, ou melhor, o lugar que o Espírito Santo ocupa no triângulo, onde toda a lógica veria aí uma mulher-mãe. As duas igrejas sempre aceitaram o dogma da Trindade, mas, até hoje, não conseguiram chegar a um acordo sobre isso. Para a Igreja Romana, na ordem da divindade, o Filho foi gerado pelo Pai, enquanto que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (por via de inspiração). Já na ordem da humanidade, Jesus é concebido por obra do Espírito Santo.
Para os Ortodoxos, o Espírito Santo procede somente do Pai e não do Filho. Passados doze séculos, com várias tentativas de acordo e reconciliação mútua, não existe perspectiva de solução. Prova de que a exclusão da mulher, nesse dogma, teve consequências funestas, e nem os próprios teólogos conseguem explicar o imbróglio que eles mesmos criaram.
O tabu da menstruação na Igreja Grega é mais rigoroso que na Católica, porque lá a mulher menstruada não pode comungar. Quanto ao casamento, talvez o único fruto do Cisma tenha sido o de abolir o celibato para os padres ortodoxos, exceto para os bispos, sendo também permitido o segundo casamento. E não há indício de que a permissão para casar-se tenha prejudicado o ministério sacerdotal.
Só de passagem, existe outra religião, não monoteísta, o Hinduísmo, que tem sua Trindade Sagrada, composta de três elementos masculinos: Brahma (deus criador), Vishnu (deus preservador) e Shiva (deus destruidor), com a diferença que Shiva também é representado como mulher e, outras vezes, metade homem e metade mulher.
A Igreja Evangélica é fruto da segunda grande divisão dentro do catolicismo. O movimento que lhe deu origem é chamado de Reforma ou Protestantismo, surgindo na Europa, no século XVI. Pretendeu reformar o que os evangélicos consideravam grandes equívocos teológicos, protestar contra várias medidas disciplinares e resgatar a pureza original dos Evangelhos que, segundo eles, tinham sido deturpados pela tradição oral pouco confiável.
Grandes teólogos, como Lutero, na Alemanha; Zwínglio, na Suíça; e Calvino, na França, são seus mentores. Na Inglaterra, leva o nome de Anglicanismo. Um dos principais questionamentos é o culto à Virgem Maria, que, segundo a doutrina, não tem fundamento nos evangelhos, já que o Novo Testamento fala o tempo todo de Cristo. Por isso, Lutero não aceitava o culto a Maria, nem o culto a nenhuma imagem de santo, porque isto era visto como uma idolatria. Lutero não aceitou também o dogma da Imaculada Conceição e nem o da Maternidade Divina. Criticou a expressão usada pela Igreja Católica, Muttergottes (mãe divina), propondo a expressão Mutter Gottes (mãe de Deus), porque, na primeira, a atribuição de divindade recai sobre a mãe e, na segunda, recai só sobre Deus. Maria é, portanto, uma simples mulher e mãe, não sendo objeto de nenhum culto (Uta, 1996).
O argumento teológico de Lutero acusa o catolicismo de ambivalência e ambiguidade, porque transforma uma criatura em mãe do próprio Criador, o que é contradição. Conhecido pela teoria do "livre arbítrio", Lutero diz que, no caso de Maria, o que acontece é o "servo arbítrio", porque ela não escolheu livremente ser mãe de Deus, tendo-se declarado a escrava do Senhor. Critica também o adjetivo "santíssima" aplicado a Maria, mesmo atributo da Santíssima Trindade, portanto de Deus.
A resposta do catolicismo aos protestantes foi que os fiéis não adoram a Virgem Maria. A adoração é exclusiva para Deus, e a Virgem Maria é somente venerada. Acontece que, nos bons dicionários, venerar é dado como sinônimo de adorar e vice-versa. Mas os teólogos não se deram conta de um detalhe curioso: a raiz etimológica de venerar vem do latim, venus-eris, que significa desejo sexual, personificado na deusa Vênus, a deusa do amor, no matriarcado e até hoje. Os teólogos cometeram assim um ato falho, ao condensarem Maria e Vênus num único significante. Com relação ao casamento, os evangélicos são mais liberais que os católicos e ortodoxos. Pastores e bispos podem se casar, sendo também permitido o divórcio. Só recentemente surgiram as primeiras mulheres pastoras, em grupos independentes.
Uma comparação entre as Igrejas Católica e Evangélica mostra que a primeira, apesar do pessimismo sexual, rígida na teoria, mas permissiva na prática, tem uma característica mais afetiva, populista, enfatizando a relação da mãe Maria com o menino Jesus, o que combina bem com os países do Novo Mundo, o Brasil, especialmente, maior nação católica do mundo. Já a Evangélica é mais rígida, fria, racional e tradicionalista, mais adequada ao espírito da Europa, onde floresceu. Recentemente, alguns ramos populares do protestantismo têm abrandado a rigidez, mostrando um crescimento, na América Latina, que vem tirando o sono das autoridades religiosas católicas.
A Psicanálise, a partir do final do século XIX, desencadeia um movimento mundial de repensar a sexualidade e o feminino, assumindo uma posição diametralmente oposta à das religiões. Faz uma ruptura com séculos de tradição, levantando a bandeira de que o objetivo sexual não é a reprodução, mas o prazer, mais no espírito do matriarcado. Como consequência, as antigas perversões passam a ser vistas simplesmente como outra versão para obtenção do prazer, sem conotação moralista (Freud, 1905).
Após tanto tempo de exclusão, o feminino recalcado se enfureceu de vez, propiciando às mulheres uma das maiores descobertas da humanidade: a histeria. Seu grito veio na paralisia do próprio corpo, na manifestação mais eloquente de um sofrimento insuportável. Semelhante ao que aconteceu com a bruxaria, a epidemia histérica cresceu rapidamente, assustando a ordem médica vigente, questionando todo o saber patriarcal.
Considerada fingimento pelos médicos, motivo de sensacionalismo para os hipnotizadores, resistente a qualquer tratamento, a histeria foi um grito de libertação. Descoberta, portanto, nas (pelas) mulheres, sistematizada e teorizada por Freud, a psicanálise foi a única que conseguiu ouvir o feminino histerizado em suas queixas seculares. A crise histérica que, como o êxtase místico, era uma espécie de orgasmo deslocado, foi aos poucos desaparecendo, à medida que a mulher conquistou seu direito à sexualidade e ao prazer. Mais do que isso, e antecipando a trilha antropológica de Lévi-Strauss sobre as estruturas elementares do parentesco, a psicanálise criou também sua santa trindade, o triângulo edipiano, constando de mãe, pai e filho, finalmente a mulher reencontrando o lugar que lhe fora usurpado no discurso religioso (Freud, 1900).
Alimentando-se também na mitologia grega, segundo versão de Aristófanes, na figura do hermafrodita, um ser de dupla natureza, ao mesmo tempo masculina e feminina, filho de Hermes e Afrodite (Vênus), a psicanálise defende a bissexualidade do ser humano. A escuta clínica só faz comprovar que, se nascemos machos ou fêmeas, com relação ao aparelho genital, temos, depois, que tomar uma decisão subjetiva de sermos homem ou mulher, com relação ao gênero, já agora pelo aparelho psíquico (Freud, 1908).
Os homens hoje querem que suas mulheres sejam femininas, e as mulheres preferem que seus homens tenham características femininas também. Isso subverte os conceitos de hétero-homossexualidade. Em um pequeno artigo, Freud referiu-se à deusa-mãe dos cristãos, Maria, que após a morte de Cristo, se mudou para a Cidade de Éfeso, na Turquia. Na antiguidade, Éfeso possuía um belo templo dedicado a Artêmis (Diana). Para ele, Diana e Maria são a mesma pessoa (Freud, 1911).
No geral, a psicanálise freudiana dá grande ênfase à figura do pai. Já a psicanálise kleiniana destaca a figura da mãe, o seio bom e o seio mau. Lacan faz uma integração do masculino e do feminino, com os conceitos de função materna e função paterna. Fala também da deusa-mãe (Lacan, 1959), que reuniu os corpos despedaçados de Osíris, Adônis e Orfeu. E desenvolveu outro conceito pioneiro na psicanálise lacaniana, o Gozo Feminino (Lacan, 1973).
O mestre francês retomou a discussão milenar do Cisma Grego, sobre o Filioque (e do Filho), se o Espírito Santo procede só do Pai ou também do Filho, dizendo que "as questões devem ser tomadas no nível em que o dogma tropeça em heresias - e a questão do Filioque me parece poder ser tratada em termos topológicos" (Lacan, 1966). Há no original um importante jogo de palavras, porque em francês hérésie se pronuncia como as iniciais R.S.I., que designam a topologia lacaniana do nó borromeano, com os registros do Real, Simbólico e Imaginário.
Para complicar um pouco mais, Lacan produziu uma frase de efeito: "Há uma verdadeira religião, é a religião cristã" (Lacan, 1974). Não está dizendo que a religião cristã seja melhor que as outras, ou que tenha origem em alguma revelação divina, só aponta para o fato de que a religião cristã e a psicanálise utilizam o mesmo fundamento, a palavra criadora (o Verbo ou o Significante), consideram o ser humano como pecador ou como faltante, e adotam o esquema trinário em suas estruturas da Trindade e dos três registros. Assim, numa convergência aproximativa, temos na teologia: Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, enquanto, na psicanálise lacaniana e freudiana, temos: Real (a mãe), Imaginário (o filho), Simbólico (o pai). É em função dessas coincidências com a psicanálise que a religião cristã é considerada verdadeira. Não satisfeito, Lacan acrescenta: "Deus é inconsciente" (Lacan, 1964).
Voltando ao feminino, Freud já fizera observações clínicas inovadoras, como a presença no inconsciente de todos nós de uma dissociação da figura da mãe entre a santa e a prostituta. Descobrira também que o homem tende a degradar a mulher para poder desejá-la, porque ele não deseja a mulher que ama, e não ama a mulher que deseja (Freud, 1912). Tal divisão decorre dos dois grandes modelos de mulher que existem na história da humanidade: Vênus de Milo, a deusa do prazer e da sensualidade, e Maria, o modelo da mãe santa. Ambas sofreram a repressão: de Vênus, apesar da exuberância sensual, mutilaram os dois braços, impedindo-a de embalar um filho. De Maria excluíram a feminilidade, limitando-a à função de mãe.
Há um dia da semana dedicado a Vênus: é a sexta-feira, que em italiano é Venerdi, em francês é Vendredi e em espanholViernes, todos significando dia de Vênus. No matriarcado, o Domingo era dedicado ao sol (Sunday), passando a dia do Senhor no patriarcado. Os outros dias da semana são dedicados à lua, Marte, Mercúrio, Júpiter e Saturno. Não há um dia para Maria, como há para Vênus. Nosso calendário é politeísta.
Também no final do século XIX, paralelamente à psicanálise, surge a literatura gótica, de terror, cujo ápice é o romance fantástico de Bram Stoker, Drácula (1897). No período de prosperidade econômica, decorrente dos progressos da técnica e da indústria, a Nova Mulher se emancipa e vai trabalhar nos redutos antes reservados aos homens. A inquietação masculina, o medo de perder o domínio, de ser devorado pelas mulheres, produziu nos homens o fantasma do vampiro dentuço. Freud referiu-se à fantasia da "vagina dentada", ao falar da angústia de castração nos homens. E um de seus textos preferidos, sobre o sinistro, era o "Homem de areia", de Hoffmann.
O século XX indiscutivelmente, pode ser chamado o "século da mulher". O grito histérico do século XIX garantiu a liberação da mulher. Juntamente com estudantes, operários, religiosos e intelectuais de todo o mundo, o movimento feminista saiu vitorioso em várias reivindicações de natureza humana, política e social, conscientizando-se ao ponto de não-retorno.
Assustada, a Igreja Católica convocou seu famoso Concílio Vaticano II, em 1962, prometendo renovação, atualização e arejamento. Tudo indicava que seriam revistas as tradicionais normas disciplinares: celibato dos padres, acesso das mulheres ao ministério sacerdotal, liberação do aborto, permissão para o uso da pílula anticoncepcional, para o uso da camisinha, aceitação da homossexualidade. As únicas opções de controle da natalidade oferecidas aos fiéis eram a abstinência sexual, ou "a tabela", que todos sabiam ser o melhor método para engravidar.
O clero e a hierarquia progressista nunca esperaram tanto da Igreja. A decepção foi brutal. Nenhuma das reivindicações acima foi atendida pelo Papa Paulo VI. Houve pequenas concessões, como usar a língua vernácula na liturgia, a confissão comunitária etc. Se maio de 1968 foi marcado pelo grito mundial de liberdade, sobretudo sexual, setembro de 1968 foi a resposta da Igreja, um balde de água fria, com a publicação da Encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI, proibindo o uso da pílula anticoncepcional. Foi tal a frustração para os fiéis e decepção para o clero, que uma quantidade assustadora de padres desertaram das fileiras do ministério.
Embora a Igreja seja hoje mais tolerante com relação ao prazer, o ato sexual só é aceito se não excluir a possibilidade da procriação. Surgiram, então, os movimentos de leigos e teólogos independentes, criando a Teologia da Libertação, que se aliou ao movimento feminista. Leonardo Boff, o ideólogo da libertação, foi proibido de ensinar teologia, devido ao "silêncio obsequioso" que Roma lhe impôs. Em 1980, o Papa João Paulo II, em audiência geral, no dia 08-10, retoma o tema do "adultério com a própria esposa". Em 1981, em encíclica, e em 1984, em audiência pública, ele reafirma a proibição do controle de natalidade pelos métodos ditos antinaturais. A ONU promoveu a década da mulher, de 1975 a 1985.
O novo milênio mostra uma situação típica. Enquanto o feminino vai se fazendo cada vez mais presente e visível, a ponto de provocar uma crise de identidade nos homens que não estavam preparados para isso, o que se verifica na Igreja é uma paralisia histérica. Por exemplo, só no ano de 2003, houve pronunciamentos oficiais, declarando que o celibato dos padres jamais será abolido, que o acesso das mulheres ao ministério sacerdotal jamais será permitido, porque assim o exige a honra (!) das mulheres, e que as meninas não podem fazer a função de coroinhas nas celebrações litúrgicas.
A última pérola da repressão católica ocorreu no mês de abril de 2003, com a publicação, na Itália, de uma espécie de dicionário, chamado Lexicon, onde, pela enésima vez, é ratificada a condenação do aborto, da contracepção, do divórcio e da homossexualidade. Baseado nesse documento, em outubro, o Cardeal Trujillo, presidente do Conselho Pontifício para a Família, órgão oficial do Vaticano, sugeriu aos governantes que desestimulassem o uso da camisinha, por não ser segura. Houve reações da ONU, através da UNAIDS, órgão oficial para o combate à Aids, e do Ministério da Saúde do Brasil, contestando a veracidade das afirmações do cardeal.
Parece que a Igreja Católica prefere que seus fiéis morram de Aids, mas não abre mão de seu moralismo milenar. Uma ONG se organizou para pedir indenizações à Igreja em benefício dos que contraírem o vírus HIV, da mesma maneira que a Igreja vem sendo obrigada, pelos tribunais, a pagar vultosas indenizações, pelos abusos de pedofilia, cometidos por padres e bispos, mundo afora.
O dogma da Infalibilidade Papal é responsável por essa paralisia da Igreja, por não se poder mudar qualquer decisão anterior de outro papa em matéria de fé e moral.
Duas conclusões breves.
a) Embora seja indubitável que as religiões, na quase totalidade, são repressoras da sexualidade, certamente elas não são a causa da repressão, apenas seu instrumento. Freud postulou que a repressão é estrutural no ser humano (Freud, 1915). Uma hipótese não-freudiana seria que o ser humano precisa defender seu território, como fazem também os animais. Não por acaso, já no Velho Testamento, há a proibição da masturbação masculina, com a finalidade de evitar o desperdício dos espermatozóides. Se todos os espermatozóides fossem utilizados para a geração de um novo ser, dentro de poucos anos o globo terrestre seria inabitável, e as pessoas iriam se destruir mutuamente, desaparecendo a raça humana. Uma única ejaculação produziria uma prole superior à atual população do Brasil. A violência nos grandes centros urbanos já é disto um prenúncio.
Há outros discursos, além da psicanálise, sugerindo que a repressão sexual e a discriminação da mulher não são apanágio das religiões. Na Filosofia, o homúnculo de Aristóteles; nas Artes, a mutilação de Vênus; na Medicina, as modernas técnicas de reprodução assistida, em que a sexualidade é excluída; além das dúvidas que pairam sobre a criação do vírus da Aids em laboratório, como punição à liberação sexual.
b) A segunda conclusão é mais alvissareira. Tudo indica que as deusas estão voltando. O mercado editorial, nas últimas décadas, tem mostrado um volume espantoso de títulos sobre o assunto. Elas estão chegando para fazer a síntese dialética. Após a tese do matriarcado politeísta, em que o modelo da mulher é a Vênus sensual, e a antítese do patriarcado monoteísta, com o modelo da Virgem recatada, que levou muitas mulheres à histeria e ao masoquismo sofredor, as mulheres de hoje buscam a síntese da convergência do masculino e do feminino, não através de alguma religião oficial, mas da espiritualidade.
O modelo da nova mulher pode bem ser a Gioconda, bem comportada, discreta, mas com um sorriso malicioso e enigmático, típico do mistério feminino, que fascina quem a observa. Já que os críticos de arte discutem se o rosto dela é de mulher ou de homem, a obra-prima de Leonardo da Vinci representa bem a integração do masculino e do feminino. E a palavra gioconda, em italiano, significa alegre.
Depois que a psicanálise comprovou a bissexualidade nos seres humanos, se é verdade que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, então Deus também tem sua face feminina, o outro lado da lua, nunca mostrado pelos detentores do poder religioso. Está na hora de tirar a máscara. Bons ventos recolocam a mulher em seu devido lugar e criam um Deus receptivo. O prognóstico é de esperança. Um novo significante para a mulher poderia ser: afroditosa, uma condensação de Afrodite, ou Vênus, com ditosa, jocosa e "giocondosa".
REFERÊNCIAS
CARTA AOS EFÉSIOS. in: Bíblia Sagrada. São Paulo: Editora Paulus, 1990, cap. V, 22-25, p. 417.
FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. in: ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1972, p. 277. v. IV.
__ (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. in: ESB. Op. cit., 1972, p. 189. v. VII.
__ (1907). Atos obsessivos e práticas religiosas. in: ESB. Op. cit., 1976, p. 121. V. IX.
__ (1908). Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade. in: ESB. Op. cit., 1976, p. 169. v. IX.
__ (1911). Grande é Diana dos Efésios. in: ESB. Op. cit., 1969, p. 432. v. XII.
__ (1912). Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor. in: ESB. Op. cit., 1970, p. 166. v. Xl.
__ (1913). Totem e tabu. in: ESB. Op. cit., 1974, p. 170. v. XIII.
__ (1915). Repressão. in: ESB. Op. cit., 1974, p. 207• v. XIV.
__ (1939). Moisés e o monoteísmo. in: ESB. Op. cit., 1975, p. III. v. XXIII.
LACAN, J. (1959). Sobre a teoria do simbolismo de Jones. in: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 723.
__ (1964). O seminário, livro XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. p. 60.
__ (1966). A ciência e a verdade. in: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 888.
__ (1973). O seminário. livro XX. Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982. p. 118.
__ (1974). Entrevista coletiva com Dr. Lacan. in: Lettres de I'École Freudienne. Paris: n. 16,1976.
RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo reino de Deus. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 1996.
Obs. Artigo publicado originalmente na Revista de Psicanálise, Pulsional, nº 178, Editora Escuta, 2004, São Paulo.
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