Paradise Now
Comentários de Geraldino Alves Ferreira Netto
O tema é a questão Palestina-Israel, em que os ataques suicidas são praticados, geralmente, por homens.
Outro filme, com o mesmo argumento: “Mulheres palestinas”, enfoca os mesmos conflitos pontuais entre Tel-Aviv e Palestina, entre judeus versus árabes, da riqueza oprimindo a pobreza, mas as protagonistas são mulheres que se preparam para a missão de terroristas.
Objetivos destes dois filmes: atacar militares, os agressores diretos, por legítima defesa. Isto é totalmente diferente de atacar covardemente civis inocentes, como nos demais casos de terrorismo.
Como trabalhar a estética e a ética no caso destes dois filmes? Ou, como pensar este tipo de terrorismo, na visão dos próprios terroristas, como Advogados do Diabo?
a) A estética
A etimologia da palavra ‘estética’, vem do grego aisthêsis, aisthetês, estesia e estético, o que é percebido pelos órgãos dos sentidos, e seu oposto é anaisthêsia, anestesia, quando não se sente nada (Picoche, 1979, pág. 265).
Freud foi enfático ao iniciar seu famoso texto sobre o familiar-estranho, de 1919, com a seguinte descrição:
“Só raramente um psicanalista se sente impelido a pesquisar o tema da estética, mesmo quando por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir. [...] e esse ramo geralmente revela-se um campo bastante remoto, negligenciado na literatura especializada da estética. O tema do ‘estranho’ é um ramo desse tipo. Relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca medo e horror. [...] o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, velho e, há muito, familiar. [...] Aquilo que é novo pode tornar-se facilmente assustador e estranho; algumas novidades são assustadoras, mas de modo algum todas elas. Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e familiar, para torná-lo estranho (Freud, 1976, pág. 275 e 277).
Freud explora aí um ramo da literatura fantástica do medo e do horror, com base no conto “O Homem da Areia”, do escritor e compositor alemão Ernst Theodor Amadeus (antes Wilhelm) Hoffmann (1776-1822).
Trata-se da história fantástica de um homem que joga areia nos olhos das crianças, na hora em que elas vão dormir. Os olhos sangram e saltam das órbitas, sendo colocados num saco e levados pelo homem para alimentar suas corujas na lua. Exemplos da estranheza:
Perder os olhos (Tirésias, Édipo);
Figuras de cera, autômatos (não se sabe se são vivos ou mortos);
O fenômeno do duplo (lança dúvida sobre quem é o eu);
A crença nos espíritos, assombrações e almas do outro mundo;
A multiplicação de um símbolo genital (a cabeça de Medusa);
A superstição, o mau-olhado ou jetatura, o pressentimento;
A onipotência de pensamentos e a técnica da magia ou dos poderes;
Casas assombradas, vampiros (tema da literatura gótica, sobretudo com Lord Byron);
O congelamento dos cadáveres (para futura ressurreição);
A visão de membros arrancados, cabeça decepada, mão cortada pelo pulso, o medo de ser enterrado vivo;
Cenas de terror; (se Freud estivesse vivo, o tema do terrorismo teria sido analisado detalhadamente aí).
A estranheza das ‘partes pudendas’, sobretudo a ‘vagina dentada’.
O grande estranho em nós é nosso inconsciente.
A fonte em que Freud se abeberou foi o poeta alemão Schiller (1759-1805), que escreveu livros sobre a estética moderna, destacando uma dualidade pulsional que inspirou os conceitos de pulsão de vida e de morte, bem como as investidas freudianas no aquerôntico infernal, mais do que nas forças celestiais, como consta na epígrafe da Interpretação dos sonhos.
b) A Ética (ou o Papa fictício e os Papas de verdade).
Num capítulo intitulado O gozo da transgressão, Lacan cita o Marquês de Sade, considerado como nosso parente ou nosso precursor (Lacan, 1988, pág. 233), e que propõe pensar o gozo da destruição, a própria virtude do crime, o mal buscado pelo mal [...] e a crença nesse Deus – o Ser-supremo-em-maldade. Esta teoria se chama o Sistema do Papa Pio VI, papa que ele introduz como um dos personagens de seu romance [História de Julieta]. Levando mais longe as coisas, ele desenvolve para nós uma visão da Natureza como um vasto sistema de atração e de repulsão do mal pelo mal. O procedimento ético consiste desde então em realizar ao extremo essa assimilação a um mal absoluto, graças a que sua integração numa natureza profundamente má realizar-se-á numa espécie de harmonia inversa (idem, pág. 240, 241).
A fábula de Sade é chamada de Sistema do Papa Pio VI. Historicamente, este foi o 250º papa, na época da Revolução Francesa, preso por se recusar a renunciar aos poderes temporais do papado. Não é autor da fábula sadeana que se segue.
“Nenhuma destruição, nenhuma nutrição para a terra e, por conseguinte, nenhuma possibilidade mais de o homem poder reproduzir-se. Verdade fatal, certamente, pois ela prova, de uma maneira invencível, que os vícios e as virtudes de nosso sistema social nada são, e que os próprios vícios são mais necessários que a virtudes, pois são criadores, e as virtudes são apenas criadas ou, se preferirem, que eles são causas , e as virtudes apenas efeitos... que uma harmonia perfeita demais teria ainda mais inconveniente do que a desordem; e que, se a guerra, a discórdia e os crimes chegassem a ser banidos da face da terra, o império dos três reinos ( mineral, vegetal, animal), tornado então demasiadamente violento, destruiria por sua vez todas as outras leis da natureza. Todos os corpos celestes parariam, as influências seriam suspensas pelo império demasiadamente extenso de uma delas; não haveria mais nem gravitação nem movimento. São, portanto, os crimes do homem que, trazendo o distúrbio à influência dos três reinos, impedem esta influência de chegar a um ponto de superioridade que perturbaria as outras, mantendo no universo esse perfeito equilíbrio que Horácio chamava de rerum concordia discors ((concórdia discordante das coisas). O crime é, portanto, necessário no mundo. Porém, os mais úteis, certamente, são os que perturbam mais, tais como a recusa da propagação (da espécie) ou a destruição; todos os outros são nulos ou, melhor, só esses dois podem merecer o nome de crimes: e eis, portanto, esses crimes essenciais às leis dos reinos, e essenciais às leis da natureza. Um filósofo antigo chamava a guerra de a mãe de todas as coisas. A existência de assassinos é tão necessária quanto esse flagelo; sem eles tudo estaria perturbado no universo, (...) essa dissolução é útil à natureza, pois é destas partes destruídas que ela se recompõe. Logo, toda mudança, operada pelo homem, nessa matéria organizada, é bem mais útil à natureza do que a contraria. Que digo, infelizmente! para servi-la seria preciso destruições bem mais totais ... bem mais completas do que as que podemos operar; é a atrocidade, é a extensão que ela quer nos crimes; quanto mais nossas destruições forem desta espécie, mais lhe serão agradáveis. Seria preciso, para ainda melhor servi-la, poder opor-se à regeneração resultante do cadáver que enterramos. O assassinato só tira a primeira vida ao indivíduo que abatemos; seria preciso poder arrancar-lhe a segunda, para ser ainda mais útil à natureza; pois ela quer o aniquilamento: está fora de nosso alcance dar a nossos assassinatos a extensão que ela deseja (grifos nossos), (idem, pág. 257, 258).
Os papas de verdade são:
- Pio XII, muito criticado e considerado culpado por ter sido conivente com o Nazismo, regime que levou à morte 40.000.000 de pessoas.
- Paulo VI que, na encíclica Humanae Vitae, de 1968, proibiu o uso do preservativo masculino, no momento da maior explosão da Aids, momento em que a cura era quase impossível. Quantos milhares de pessoas morreram em consequência disto?
Em recente entrevista ao Programa Roda Viva, da TV Cultura, o médico infectologista Dráusio Varela acusou a Igreja Católica de crime contra a humanidade, ao proibir o uso de preservativos.
- João Paulo II reforçou a proibição, em 1995, na encíclica Evangelium Vitae. Curiosamente, estas duas cartas papais referem-se à vida, embora lenientes com a morte.
Há diferença ética, (quanto ao desejo) entre Antígona e o terrorista? Para ambos, a morte biológica nada significa diante da morte do desejo e da dignidade. Um narcisismo patológico, que não leva em conta o outro, nosso semelhante, como no caso do terrorista, impede aceitarmos as diferenças individuais e culturais, segundo o psicanalista Mauro Mendes Dias.
c) Freud e a questão palestina.
As muitas referências freudianas sobre a religião referem-se ao Judaísmo ou ao Cristianismo. O terceiro monoteísmo, o Islamismo, não é contemplado em suas obras. Entretanto, em uma carta a Chaim Koffler, Freud escreveu sobre a questão palestina, porque se opunha ao projeto sionista de uma reconquista da terra prometida. Em suma, Freud era um judeu da diáspora. [...] Analogamente, se lhe acontecia com muita frequência defender a implantação de colônias judaicas na Palestina, mostrava grande prudência face ao projeto de fundar um “Estado dos judeus”. Desde 1925, Freud tornara-se membro do conselho de administração da Universidade de Jerusalém.
Em carta de 1930, a Albert Einstein, diz Freud: não acredito que a Palestina possa vir a ser um Estado judeu, nem que o mundo cristão, como o mundo islâmico, possa um dia estar disposto a entregar seus Lugares Santos à guarda dos judeus. [...] Concedo também, lastimando, que o fanatismo pouco realista de nossos compatriotas tem sua cota de responsabilidade no despertar da desconfiança dos árabes. Não posso sentir qualquer simpatia por uma fé mal interpretada que faz de um pedaço do muro de Herodes uma relíquia nacional e, por causa dela, desafia os sentimentos dos habitantes do país. [...] Freud se declarava orgulhoso de “nossa” universidade e de “nossos kibutzim”, embora reiterando que muçulmanos e cristãos jamais aceitariam entregar seus santuários a judeus. [...] Freud teve claramente a intuição de que a questão da soberania sobre os lugares sagrados estaria um dia no centro de uma controvérsia praticamente insolúvel, não só entre os três monoteísmos, como entre os dois povos irmãos residentes na Palestina. Temia com toda a razão que uma colonização exacerbada terminasse por opor, em torno de um lanço de muro idolatrado, árabes antissemitas a judeus racistas. (Roudinesco, 2016, pág. 403 e 404).
d) O conflito
Desde a Guerra dos Seis dias, em 1967, entre Israel e países árabes (Egito, Jordânia e Síria), o conflito palestino-israelense não tem trégua nestes últimos 50 anos. Neste mês de julho de 2017, foram revelados arquivos secretos militares de Israel, onde constava que, nesta Guerra dos Seis Dias, o Ministro da Defesa, Moshe Dayan tentou expulsar todos os palestinos para o Brasil.
E vem se agravando, sobretudo, desde 1993, quando o Primeiro-Ministro de Israel, Yitzhak Rabin e o representante da OLP (Organização pela Libertação da Palestina), Yasser Arafat assinaram o acordo de Oslo, definindo que Israel devia retirar-se da Faixa de Gaza, de Jericó e da Cisjordânia no período de cinco anos.
Estes acordos não foram cumpridos e, o pior, com o consentimento das autoridades palestinas, que se envolveram em casos de corrupção. Os palestinos perderam toda a esperança na política e passaram a se defender dos assentamentos israelenses com ataques constantes, sobretudo a partir de 2000.
O Estado de Israel não admite nem pretende admitir a existência de um Estado da Palestina, e vai invadindo e subjugando cada vez mais o território da Faixa de Gaza. Alguns Palestinos, muitos dos quais são muçulmanos, residentes em Israel, não são considerados cidadãos, são só residentes, sem direito a voto e sem passaporte.
Ambos os lados alegam legítima defesa, o que faz com que as atividades terroristas palestinas tenham significado totalmente diferente dos outros ataques em países distantes, que são mais movidos por motivos religiosos.
A ONU não admite oficialmente o Estado da Palestina, admitindo só temporariamente a Autoridade Palestina. A maioria dos países do mundo, 136, reconhecem o Estado Palestino.
e) O Filme
O argumento de Paradise Now, é o mesmo de Mulheres Palestinas, a saber, que Israel, com a população de 8.500.000 habitantes, é um país rico e fortemente armado, com o dobro da população da Palestina, a qual é pobre, militarmente insignificante, e a única arma disponível para a população é o próprio corpo a explodir.
Algumas frases em Paradise Now: A ocupação modela a resistência. Mais vale morrer do que ser inferior. Se você não teme a morte, controla a vida. Não vale a pena viver sem dignidade. A morte é uma vitória. Se não temos segurança, eles também não.
Em Mulheres Palestinas: “A Ocupação pode destruir sua casa e tudo à sua volta, roubar sua água, sua eletricidade, seus direitos, te colocar na prisão. Mas eles não podem ocupar sua esperança”. Em Paradise Now, Shua, a menina pacifista diz que Said e Kaled são pessoas normais, não são fanáticos. Diz também que o pai de Said foi executado pelos judeus como traidor por ser colaboracionista com a causa palestina. E que a estratégia terrorista não é adequada.
Recados dos instrutores a Said e Kaled: É uma honra que poucos alcançam. Honraremos seu heroísmo e cuidaremos de suas famílias. Os dois mártires têm dúvidas sobre sua missão, conforme o diálogo abaixo:
Said: Irás para a casa dos anjos. Kaled: Estás seguro? Said: Não nos enganamos? Kaled: Claro que não. Estaremos com Alá no paraíso (já).
O último preparativo de despedida foi uma réplica da “Santa Ceia”.
Said decide continuar sozinho sua missão. Recusou entrar num ônibus onde havia só civis, mulheres e crianças. Mas entrou num segundo ônibus, onde havia mais soldados, e o The end nos poupou dos estilhaços.
) Dois paraísos
De qual paraíso se trata? Do céu, para onde viajariam imediatamente os que se sacrificam por Alá, como foi o caso de Said? Ou haveria outro paraíso, como escolheu Kaled, um paraíso cujo deus, lacaniano, é a mulher?
A mulher da qual se trata é um outro nome de Deus, e é por isso que, como eu disse muitas vezes, ela não existe. [...] A única coisa que permite supor A mulher é que, como Deus, ela seja poedeira (Lacan, 2007, pág. 14 e 124).
g) Resumo da ópera
Somos eticamente responsáveis por nossas escolhas. Cuidemos de nossas deusas. Por elas vale a pena viver e, até, morrer. Assim, teremos um Paradise Now, Forever and Here.
Referências
Freud, Sigmund. O Estranho, Obras Completas, E.S.B., Rio de Janeiro, Imago, vol. XVII, 1ª Ed. 1976.
Lacan, Jacques. A ética da psicanálise, livro 7, Rio de Janeiro, Zahar, 1988.
Lacan, Jacques. O sinthoma, livro 23, Rio de Janeiro, Zahar, 2007.
Picoche, Jacqueline. Dictionnaire Etymologique du Français, Paris, Le Robert, 1979.
Roudinesco, Elisabeth. Sigmund Freud, na sua época e em nosso tempo, Rio de Janeiro, Zahar, 2016.
Trabalho apresentado no “Grupo de estudos Cinema e Psicanálise” da Associação Livre-Campinas, S.P., no dia 30 de julho de 2017.
Deixe sua opinião, é importante para melhorarmos ainda mais.