Tema básico na filosofia, a ontologia é a ciência do ser em si; opõe-se à antropologia, que é a ciência do homem. Praticamente, todo filósofo desenvolve sua ontologia, com pouco consenso entre eles. O próprio Aristóteles sentiu dificuldade em definir o ‘ser’. De acordo com o Dicionário da Filosofia (Larousse do Brasil, no verbete ‘essência’), para Santo Tomás, a metafísica estuda a essência (a natureza ou as características de um ser), enquanto que a ontologia estuda o fato da existência do ser. A partir daí, os filósofos se agrupam em duas categorias: essencialistas e existencialistas, conforme a primazia que atribuem à essência do ser ou à existência do ente. Para Sartre, “a existência precede a essência”, e o homem tem de dar à sua vida um sentido, através de um livre engajamento, condenado que está a ser livre, com a consequente angústia metafísica e existencial. Para Hegel, ontologia é o fato da existência que se realiza em todo homem. O termo ‘existencialismo’ foi criado por Heidegger, apontando para a vida concreta do homem no mundo e na história.
Já segundo o Dicionário de Filosofia (Gérard Durozoi e André Roussel, no verbete ‘ser’) “é possível que o sentido metafísico do substantivo seja indefinível, na medida em que, como Pascal observava, qualquer definição faz intervir, pelo menos implicitamente, a fórmula ‘é’, utilizando no caso, num círculo vicioso, o termo que ela deveria definir”. Ainda segundo o Durozoi, para Hegel, “o ser é idêntico ao não-ser”.
O brilhante hegelianista Alexandre Kojève, professor de Lacan, destaca na contracapa de seu livro Introdução à leitura de Hegel, a definição hegeliana de Ser (Ser, com maiúscula, é o substantivo, enquanto que, na minúscula, designa o verbo): Manter-se na existência significará, pois, para esse Eu: ‘não ser o que ele é (Ser estático e dado, Ser natural, caráter inato) e ser (isto é, devir) o que ele não é’. Esse eu será assim sua própria obra: ele será (no futuro) o que ele se tornou pela negação (no presente) do que ele foi (no passado), sendo essa negação efetuada em vista do que ele se tornará.
Mais dedicado à clínica e pouco interessado nestas elucubrações especulativas e filosóficas, Freud acabou criando uma nova ontologia, totalmente subversiva em relação à filosofia. Numa direção existencialista, na qual o que interessa é como o ser humano administra seus desejos inconscientes, Freud não se preocupou em teorizar especificamente a sua ontologia.
Mais familiarizado com a filosofia de todos os tempos, coube a Lacan traçar as linhas de uma ontologia do inconsciente, a pedido do filósofo, psicanalista e genro Jacques-Alain Miller. Encontramos várias referências no Seminário 11, de 1964, sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, em que Lacan define o inconsciente pela estrutura de uma hiância, de uma falta, falando da função do desejo como falta-a-ser, de tal maneira que possamos dizer que o inconsciente não se presta à ontologia. Então, “o inconsciente não é nem ser nem não-ser, mas é algo de não-realizado”, o recalcado. E por ser não-realizado, retorna no sonho, no sintoma, no ato falho, como tentativa alucinatória de realização. Assim, o inconsciente não é um objeto real, por seu estatuto de não-realizado.
Mais adiante, Lacan esclarece uma frase de Freud, dizendo que o inconsciente é ético, não ôntico. Isto é, temos que reconhecê-lo pelas suas manifestações, desde a experiência inicial com as histéricas, em que algo era contido, rejeitado, marcado pelo engano. É ético, também, porque ele nos compele ao dever de administrar a economia de nossos desejos. É uma ética do desejo, da falta.
Mas a ontologia que deu mais tesão em Lacan foi o cogito de Descartes. Referiu-se a ele em vários textos, mais especificamente em A instância da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud (1957). O cogito cartesiano ‘Penso, logo sou (sujeito da consciência)’ não passa de uma tautologia redundante (sou pensante, logo sou). Freud diria: ‘Eu desejo, logo sou (sujeito do inconsciente)’. E a réplica de Lacan a Descartes foi: ‘Penso onde não sou, logo sou onde não penso’ deslocando a frase afirmativa imaginária de completude para uma sentença negativa simbólica que denuncia a falta, como indicou Freud ao falar do desejo. O sujeito verdadeiro é o sujeito do inconsciente, enquanto não pensa, centrado mais na desrazão, incoerência, contradição ou loucura (foliesophie) do que na razão (philosophie). Descartes seria psicanalista se tivesse dito: Penso, logo não sou. Simples, assim.
Mais tarde, no Seminário 23, de 1975, intitulado O sinthoma, retomando a pergunta sobre a questão do ser, implícita em sua teoria, Lacan responde com uma simples palavra: parlêtre, traduzida por falasser ou falesser. Mas o neologismo é bem mais rico de sentidos: parler (falar), lettre (letra), être (ser). Designa aquele que é, pelo simples fato de falar, apanágio exclusivo do sujeito humano. A tradução ao português foi ainda mais fundo: falesser (fale, ser!) e (falecer), mostrando a morte como a dimensão última de nossa existência. Como falasseres-falesseres, fala/dores-falec/entes, incluído o Falo, eu falo, somos definidos como sujeitos desejantes, determinados pela linguagem perante a morte, o Outro absoluto. É a psicanálise reconstruindo aquele ponto faltante na filosofia, o conceito de inconsciente recalcado.
Nosso cancioneiro popular é sábio, ao dizer: O homem que diz: sou, não é; porque quem é mesmo, é, não sou. E o fado, especialidade de nossos amados paleontológicos portugueses, digno de um Fernando Pessoa, contextualiza bem o mistério do inconsciente: “de mim só me falto eu”.
Bibliografia
Durozoi, Gérard e Roussel, André. Dicionário de Filosofia. Campinas, Papirus, 1993.
Julia, Didier. Dicionário da Filosofia. Rio de Janeiro, Larousse do Brasil, 1969.
Kojève, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro, Contraponto, 2002.
Lacan, Jacques. A instância da letra no inconsciente. In Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
Lacan, Jacques. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Seminário 11. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
Lacan, Jacques. O sinthoma. Seminário 23. Rio de Janeiro. Zahar, 2007.
Campinas, abril de 2016