James Joyce e seus lapsos
As estruturas clínicas podem definir-se pelas respectivas estruturas de linguagem. Um escritor que inventou uma forma inédita de escrita suscita a dúvida de ser louco.
A História da loucura, desde a desobediência de Eva, pela prática criativa de algo incomum no paraíso, transformou-se numa brilhante herança humana, nem sempre devidamente valorizada.
De acordo com a Grande Enciclopédia Larousse Cultural (1998, vol. 11, verbete Foucault, pág. 2.523, e vol. 15, verbete Loucura, pág. 3.660), o mais profundo estudo sobre a loucura foi feito por Michel Foucault, em seu livro História da Loucura (1961). Segundo Foucault, já na Idade Média, a loucura era considerada uma experiência pessoal, como todas as outras, embora a Igreja a avaliasse como possessão demoníaca. No século XV, era bruxaria e heresia, menos para os renascentistas, que equiparavam a loucura a uma outra forma de razão, a ponto de ser elevada à condição de remédio para a monotonia da vida, na pena de Erasmo de Rotterdam, em Elogio da loucura, de 1511. Erasmo também se refere à ‘loucura dos artistas’, tema retomado por Lacan ao comentar a arte da escrita em James Joyce.
Erasmo acrescenta (in Schüller, 2017, pág. 17) que a loucura dos artistas é alegria dos deuses e dos homens, [...] presente em brincadeiras conjugais, [...] acende o sorriso no rosto das crianças, [...] sem loucura não há vida [...] loucura e sabedoria se confundem.
Ainda segundo a Enciclopédia Larousse, no final do século XVIII, a loucura foi ‘promovida’ a doença mental, a um desvio da norma, e destinada aos asilos. Com a psicanálise, seria uma tentativa de regularizar os conflitos originários da infância. Para a medicina, era uma doença mental, até hoje. Na psiquiatria, é manifestação psicótica, com origens genéticas, sociais, psicológicas e físicas. Foi convencionado afirmar aí uma ruptura com a realidade.
Nos anos 60, David Cooper e Ronald Laing lideraram o movimento da Antipsiquiatria, definindo a loucura simplesmente como uma realidade diferente da suposta sanidade. Mas o uso de medicamentos e internações é responsabilizado pela “fabricação de uma loucura patológica”. Os equívocos sobre o conceito de loucura dificultam qualquer consenso. Lacan define as mulheres como loucas, por não formarem um conjunto, e acrescenta o parentesco da loucura com a arte no caso de James Joyce e outros artistas.
Qual a etimologia do verbete loucura? Sempre sugeri que deriva do latim loquere (falar), de onde vem locução, mas nunca encontrei confirmação em vários dicionários etimológicos. Para o filósofo francês Jacques Derrida, a filosofia não pode viver sem a loucura, presente ainda que negada. O louco estaria escondido em nós, louco do ‘logos’ (razão), com raiz grega (idem ibidem, pág. 16). O maluco seria o mais louco.
- A loucura, para Lacan.
Em 1946, Lacan (Escritos, 1998a, pág. 177), é taxativo: E o ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem se não trouxesse em si a loucura como limite de sua liberdade.
Ao iniciar seu “retorno a Freud”, em 1953, Lacan (idem, 1998b, pág. 281 e 284), afirma a existência de dois tipos de loucura:
Na loucura, seja qual for sua natureza, convém reconhecermos, de um lado, a liberdade negativa de uma fala que renunciou a se fazer reconhecer, ou seja, aquilo que chamamos de obstáculo à transferência e, de outro lado, a formação singular de um delírio que, _ fabulatório, fantástico ou cosmológico; interpretativo, reivindicatório ou idealista _ objetiva o sujeito em uma linguagem sem dialética.
Neste exato ponto, em nota de rodapé, Lacan cita o aforismo de Lichtenberg: Um louco que se imagina príncipe só difere do príncipe que efetivamente o é pelo fato de aquele ser um príncipe negativo, enquanto este é um louco negativo. Considerados sem seu sinal, eles são semelhantes.
Lacan reforça essa ideia, citando um padrinho autorizado, Pascal, que disse: os homens são tão necessariamente loucos que seria enlouquecer por uma outra forma de loucura não ser louco.
Na supracitada afirmação, em Função e campo da fala e da linguagem, Lacan aponta duas formas de loucura decorrentes da fala ou da linguagem, uma das quais, que cita os fenômenos elementares, é claramente sinônimo de psicose. Esta é a grande questão: qual é a diferença entre psicose e loucura? Acho ambígua a posição de Lacan.
- Nos dicionários
O que dizem os Dicionários de Psicanálise sobre a loucura? Dicionários especializados sobre determinado discurso registram os verbetes autorizados oficialmente em dada área do conhecimento.
O Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche e Pontalis (1982), não registra o verbete ‘loucura’ nem ‘James Joyce’.
O Dicionário enciclopédico de psicanálise, de Pierre Kaufmann (1993) segue o mesmo esquema.
Roland Chemama, no Dictionnaire de la Psychanalyse (1993), idem. Mas aponta contradições em Lacan, no verbete symptôme, referindo-se ao significante sinthome.
O Dicionário comentado do alemão de Freud, de Luiz Hans (1996), idem.
As palavras de Freud – Vocabulário Freudiano, de Paulo César de Souza (2010), idem.
O Dicionário de Psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1998), não registra o verbete ‘James Joyce’, embora o comente em outros verbetes, mas é o único a incluir o de ‘loucura’, sem explicar o significado, e afirmando que a psicanálise aborda a loucura pela escuta transferencial da fala, do desejo. E situa a loucura mais do lado da psiquiatria.
A pergunta decorrente deste levantamento nos Dicionários de Psicanálise é se o conceito de loucura faz parte do arsenal teórico da psicanálise.
- Os teóricos da Psicanálise
No Seminário 23, Lacan fez a lacônica, irrespondida e, até 2005, não publicada pergunta: Joyce era louco? (Lacan, 2005, pág. 75).
A meu ver, a maioria dos analistas e grandes teóricos da psicanálise se precipitaram em concluir, com suposta base em Lacan, que loucura e psicose fossem sinônimas e, portanto, que Joyce era psicótico. Vejamos alguns exemplos:
- Christian Dunker, em Por que Lacan? (Dunker, 2016, pág. 124), descreve o desencadeamento da psicose pela emergência de uma espécie de crença sem saber, [...] pequenos acontecimentos que possuem a dimensão de uma revelação, ou de uma epifania (Joyce).
- Oscar Cesarotto, em Jacques Lacan, uma biografia intelectual (Cesarotto, 2010, pág. 154), afirma que o psicótico é o louco que, à diferença dos outros loucos, não se defende do real pelo simbólico.
- Antônio Quinet, em Teoria e Clínica da Psicose (Quinet, 1997, pág. 221), no capítulo XVIII, dedicado a Artur Bispo do Rosário, referindo-se à criação artística, diz que quando no registro do Nome-do-Pai, ou seja, quando referida à arte cultural, pode ser articulada ao conceito de sublimação. [...] Quando a criação se situa fora do âmbito do Nome-do-Pai, ou seja, na estrutura clínica da psicose, temos o conceito de sintoma, inventado por Lacan para se referir à arte de James Joyce [...] impedindo assim que o autor de Finnegans Wake submergisse na loucura.
- Stella Jimenez, em No cinema com Lacan (2015, pág. 219), esclarece que A palavra sinthoma aparece na obra de Lacan relacionada às psicoses, quando ele toma James Joyce como seu exemplo princeps. [...] Um psicótico também pode ter um quarto nó, mas de outra maneira, já que a amarração não seria borromeana. Joyce, por exemplo.
- Donaldo Schüler utiliz0a a pergunta de Lacan como título para seu livro Joyce era louco? E explica o que entende por loucura (Schüller, 2017, pág. 207): Joyce ensaia dezoito maneiras de narrar. Insatisfeito, investe, em Finnegans Wake, contra a ordem simbólica inteira, abala a sintaxe, desmonta a fronteira de palavras, implode a língua inglesa. A prosa volta às forjas de quem sabe fazer. Schüler não identifica loucura com psicose.
- Philippe Julien, em Psicose, perversão, neurose (Julien, 2002, pág. 82). No capítulo da psicose, o autor escolhe o personagem James Joyce para afirmar: A psicose, com efeito, é definida pelo nó borromeano, nodulado por esse sin-thoma quarto elemento que é o Nome-do-pai, como Pai-do-Nome.
- Elisabeth Roudinesco também acreditava que Joyce era louco e que loucura era sinônimo de psicose (Roudinesco, 1994, pág. 373): Ao acrescentar esse quarto elo, chamado sinthome, ao nó a três, ao mesmo tempo Lacan também brincava de introduzir sua doutrina e seu romance familiar na obra joyceana. [...] Deduzia disso que o pai do escritor era louco, que o nome-do-pai estava foracluído do discurso joyceano.
- A recente tradução do livro de Colette Soler, “Lacan, leitor de Joyce” (2018), veio provocar grande polêmica sobre o já discutido e misterioso escritor irlandês, retratado no Seminário 23. A psicanalista Soler foi membro da antiga Escola dissolvida por Lacan em 1980 e participou do surgimento dos Fóruns do Campo Lacaniano e da Escola Internacional de Psicanálise.
Sua tese principal é de que a grande maioria dos analistas e teóricos lacanianos erraram (pág. 8) ao concluir que Joyce era um psicótico. Ainda no prefácio do livro (pág. 11), é dito que serão necessários outros cem anos para o estudo dos pontos novos apontados a partir da leitura feita por Lacan da obra joyceana. Não há nele a proposta de novas estruturas ou a abolição de alguma delas. Isto é: a loucura não é uma estrutura clínica.
Uma revelação importante e inesperada: Lacan não emprega o termo “psicose” nesse seminário. Ele somente se perguntou se Joyce era louco, mas o louco e o psicótico não são um só (pág. 78). Na página seguinte, Soler questiona a argumentação de Lacan sobre a carência do Pai, em Joyce. No seminário 23 (Lacan, 2007, p. 86), Lacan tinha afirmado: seu pai jamais foi um pai para ele. Que não apenas nada lhe ensinou, como foi negligente em quase tudo, exceto em confiá-lo aos bons padres jesuítas. Isto é uma contradição, porque foi justo neste colégio que Joyce adquiriu sua inestimável cultura literária. Em outro lugar Lacan critica este pai pelo fato de que bebia. E algum irlandês deixaria de beber seu incomparável whisky?
-Televisão
Em 1974, num programa de televisão francesa, portanto um ano antes do Sem. 23, de 1975, Lacan (Lacan, 1993, pág. 70) constrói um de seus mais famosos aforismos sobre as mulheres: Assim, o universal do que elas desejam é loucura: todas as mulheres são loucas, como se diz. É justamente por isso que elas não são todas, isto é, não loucas-de-todo.
Nesta citação, Lacan defende uma loucura sem psicose, sem desenodamento dos nós, sem fabricação do quarto nó, sem sinthoma, sem prótese, sem suplência, sem Pai-do-Nome, e sem surto.
- Seminário 20
Lacan embaralha mais a querela diagnóstica sobre Joyce, três anos antes do Seminário 23, isto é, no Seminário 20, quando diz:
O que é que se passa em Joyce? O significante vem rechear o significado. É pelo fato de os significantes se embutirem, se comporem, se engavetarem – leiam Finnegans Wake – que se produz algo que, como significado, pode parecer enigmático, mas que é mesmo o que há de mais próximo daquilo que nós analistas, graças ao discurso analítico, temos de ler – o lapso. É a título de lapso que aquilo significa alguma coisa, quer dizer, que aquilo pode ser lido de uma infinidade de maneiras diferentes [...] Mas esta dimensão do ler-se, não é ela suficiente para mostrar que estamos no registro do discurso analítico? (Lacan, 1982, pág. 51).
E no Seminário 23 (Lacan, 2005, 85), diz: Ser louco não é um privilégio. O que proponho aqui é considerar o caso de Joyce como respondendo a um modo de suprir um desenodamento do nó.
Nestas duas últimas citações, podemos sentir-nos autorizados por Lacan a concluir que Joyce era neurótico, ou que era psicótico. Há argumentos fortes para as duas proposições. Mas são conclusões contraditórias, provocadas por Lacan.
O título do seminário 24, L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, é totalmente inspirado na homofonia translinguística de Joyce, tendo recebido de Christian Dunker uma brilhante tradução: o insucesso do inconsciente é o amor (Dunker, 2016, pág. 270).
- Miller fala de Lacan
Após a publicação da primeira edição francesa do seminário 23, em 2005, Jacques Alain-Miller lança o original de seu importante livro Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O Sinthoma, em 2010, com revelações sulfurosas sobre os ensinamentos de Lacan.
O genro começa dizendo que houve três Lacans:
O primeiro, do Simbólico e do retorno a Freud, começa no seminário 1 e no texto Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, de 1953 e dura dez anos, até o seminário 10 em 1963 (Miller, pág. 56);
O segundo, do Real, da topologia, com início no seminário 11, em 1964, até o seminário 23, em 1975 (Miller, pág. 56).
O terceiro Lacan, da Psicanálise Absoluta, teve início em 1976, abrangendo os dois últimos seminários 24 e 25. Miller declarou que classificou essa Psicanálise como “absoluta”, que não se assemelha em nada ao que havia, e que era uma psicanálise sem igual, praticada por profissionais de diferentes disciplinas. Tentou conciliar a Psicanálise como companhia e a Psicanálise Absoluta. Esta era, simultaneamente viúva, órfã e estéril, o que levou um simpático matemático a dizer que o tinha achado muito pessimista em matéria de psicanálise. Miller insiste: ela é ignóbil. O derradeiro ensino de Lacan mantém-se nessa margem em que se observa a potência destrutiva da psicanálise, e um fechamento para aqueles que possuem sua prática. A Psicanálise Absoluta está em má companhia. Em seu derradeiro ensino, Lacan fala mal de todo mundo: Lévi Strauss, Jakobson e Freud (Miller, pág. 153).
A Psicanálise Absoluta incluía a matemática, a teoria dos jogos, a teoria dos grafos e a cibernética (Miller, 151). Ao final do seminário 24, diz Lacan: “Em tudo isso há apenas paradoxos” (Miller, 149).
Psicanálise Absoluta? No seminário 23 (Lacan, 2007, págs. 116-117), Lacan afirma: Todo objeto, exceto o objeto que chamo de pequeno a, que é um absoluto, concerne a uma relação. [...] O real é para ser buscado do lado do zero absoluto.
Miller não faz ressalvas diretas ao primeiro Lacan, que é admirado e louvado pela grande maioria dos analistas e teóricos lacanianos. Quanto ao segundo e terceiro, há críticas, divergências e acusações de tamanho variado.
- A questão do Real
Depois de uma década defendendo o inconsciente no registro do simbólico e estruturado como linguagem, Lacan nos pergunta: Como saber se o inconsciente é real ou imaginário? (Lacan, 2007, pág. 98). Segundo Miller, temos questões e, como respostas, recebemos uma forma de perguntas (Miller, pág. 142). E continua: o inconsciente proposto por Freud não inclui o real (pág. 86). E acrescenta: Esta proposição ‘o inconsciente é real’ merece ser meditada, tanto mais que ela não é de modo algum evidente (idem, pág. 24).
Miller acrescenta: Só há real naquilo que exclui toda espécie de sentido, ideia que é exatamente o contrário de nossa prática (2010, pág. 158). E referindo-se ao derradeiro Lacan, diz Miller: Ele continua a se mover em seu seminário 24, L’Une-bévue, com uma confusão de aporias cada vez mais rigorosa (idem, pág. 178).
E o genro insiste: O que inspirou Lacan em seu derradeiro ensino não está em Freud. Várias vezes Lacan o denegriu. O que inspirou Lacan em seu derradeiro ensino foi James Joyce (pág. 134). A transferência, por exemplo, é a grande ausente, pelo menos nos seminários 23 e 24 (pág. 146). E Lacan pergunta: Será que o inconsciente está do lado da verdade, do verdadeiro, ou do lado do real? (pág. 25). Aliás, segundo Miller, Lacan fala de dois inconscientes: o inconsciente real e o inconsciente transferencial, explicitando: o efeito de verdade passado deixa de sê-lo por sedução do efeito de verdade a advir. Portanto, a verdade apreendida por seu efeito é mutável, é variável (varité) (pág. 26). E falando sobre a verdade: Dizê-la toda é impossível: materialmente faltam para isso as palavras. É mesmo por este impossível que a verdade tem a ver com o real (pág. 28).
Miller comenta ainda que, no último ensino de Lacan, há uma inadequação do simbólico. O simbólico gera confusão (idem, pág. 194). É uma fantasia acreditar que a palavra faz a coisa (196).
Miller se queixa de não encontrar uma porta de entrada em todo o derradeiro ensino esotérico e secreto de Lacan (134). A leitura, mesmo repetida, parece oferecer certa desordem. Se ficamos ofegantes em acompanhar Lacan, ele mesmo confessa que também está sem fôlego. E isto é um consolo (149). A ideia do real é um sintoma de Lacan (pág. 76).
Após Lacan ter dito que “o sinthoma é real”, “o inconsciente é real”, Miller pensou em dizer a Lacan: “Tudo isso é falso em relação ao que o senhor havia dito antes” (pág. 93).
- A questão da topologia
Segundo Miller, a topologia é forrada com a sociologia (pág. 189). E há um contraste constante entre o uso da língua mais familiar e o hipertecnicismo das figuras topológicas (pág. 190). Este derradeiro ensino constitui uma deflação da análise (esvaziamento) (pág. 190 e 191).
Referindo-se ao nó borromeano, diz Miller: Parece-me que Lacan explora a dimensão que é ‘o avesso do lacanismo’ que situava o Outro no próprio fundamento do sujeito (pág. 77).
Comentando sobre os ‘pedaços de real’, diz Miller: não se passa impunemente ao avesso de Lacan, ao avesso do seu ensino (pág. 106). O mesmo Lacan que deu ao Seminário 17 o título de O avesso da psicanálise, afirmando que o discurso da ciência, do saber, da objetividade e do poder é o contrário do discurso da subjetividade, da verdade, da psicanálise, agora diz o contrário, que a psicanálise se funda no discurso da ciência exata, matemático-topológica.
Em O esp de um laps (prefácio da edição inglesa do Seminário 11), Lacan se põe a sonhar com uma análise sem analista (autoanálise?). [...] Se tivéssemos de indicar aqui o lugar do analista, poderíamos dizer que é o ponto de retorno do circuito (pág. 92). Miller também fala que este texto é obscuro, e alfineta: sempre há a hipótese de que ele enchesse linguiça (pág. 57).
No Seminário 25, Momento de concluir, Lacan diz: A geometria euclidiana tem todas as características da fantasia (pág. 196). Este seminário deixou perplexos todos os discípulos (pág. 197). E, por fim, os ensaios topológicos são figurações do fato de o analista cortar (pág. 198).
Ninguém melhor que Ricardo Godenberg formalizou concisamente a crítica sentida que fazemos a Lacan: Se preferirem o ultimíssimo – aquele da segunda clínica, que teria elevado o real em detrimento do simbólico – (Goldenberg, 2018, p. 245).
-Crítica a Freud
Miller comenta uma citação de Lacan a respeito da Interpretação dos Sonhos: é impossível compreender o que Freud quis dizer, afirmando, com isso, que se tratava de um delírio. Mas o próprio Lacan confessou ter delirado em seu seminário (193,194).
- O excesso dos nós
Somente no seminário 23, Lacan desenha mais de cem nós borromeanos diferentes. A quem estaria ele tentando convencer? A ele mesmo? Em outro texto, Lacan cita uma famosa afirmação aristotélica que diz: quanto maior a extensão, menor a compreensão; e quanto maior a compreensão, menor a extensão. Isto é, quanto mais qualificativos usamos, menor é o número de objetos aí compreendidos. E vice-versa.
Há também, em outro texto de Lacan, uma citação do dramaturgo classicista francês, Boileau (1636-1711) que diz: Ce que l’on conçoit bien s’énonce clairement, et les mots pour le dire arrivent aisément (aquilo que conceituamos bem é claramente enunciado, e as palavras para dizê-lo chegam naturalmente.
O último Lacan tinha clareza daquilo que falava, ou estava esclerosado?
Conclusão
Na minha opinião, se observarmos a estrutura de linguagem e o estilo de James Joyce, desde seu livrinho infantil, intitulado O gato e o diabo, dedicado a seu neto de quatro anos, apreciado por crianças e leitores de todas as idades, passando por Dublinenses, Retrato do artista quando jovem, Ulisses, Finnegans Wake e outros, com diferentes níveis de dificuldade, sobretudo no último, pelo recurso inédito e constante á homofonia translinguística e ao lapso, veremos que tudo obedecia às leis da linguagem e, portanto, à decodificação. Só podemos concluir que o autor passou normalmente pela operação simbólica da castração e do Nome-do-Pai. Não faltou o simbólico para quem dominava o plurilinguismo, sessenta e cinco línguas, segundo Soler (opus citada, pág. 146), e também segundo Dirce (Amarante, 2009, pág. 108). Sua loucura linguageira criativa transformou-o em referência indiscutível na literatura mundial.
Bibliografia
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Geraldino Alves Ferreira Netto