Por Geraldino Alves Ferreira Netto
O título acima é copiado literalmente da edição brasileira oficial das Obras Completas de S. Freud, chamada Edição Standard. A tradução está errada. O certo é ‘angústia’ no lugar de ‘ansiedade’. O conceito de ansiedade não é psicanalítico, é mais psiquiátrico.
Este é possivelmente o livro mais criticado do Freud, por três autores de grande renome.
1) O Editor inglês, na Introdução ao texto, aponta que o famoso biógrafo de Freud, Ernest Jones, critica o fato de Freud ter encontrado inusitada dificuldade em unificar o trabalho (Freud, 1976a, pág. 96). Qual é o problema? O próprio Freud confessou esta dificuldade em outros textos, sobre as pulsões, por exemplo.
2) No Dicionário de Psicanálise, Elisabeth Roudinesco, sem nenhum pudor, diz simplesmente: É o livro mais fraco de Freud (Roudinesco, 1988, pág. 383). O argumento da historiadora é de que Freud não aproveitou a preciosa contribuição da moderna Filosofia sobre a angústia existencial. Mas é um texto extremamente clínico, não basta isso?
3) Por fim, Lacan (Lacan, 2005a, pág. 18), referindo-se ao texto freudiano, diz que, ali: fala-se de tudo, graças a Deus, exceto da angústia. Isto não é verdade. Talvez Lacan estivesse dizendo que Freud não fala de angústia, do jeito que ele (Lacan) queria.
Estas críticas até fazem algum sentido. Mas o próprio Freud admite algumas dificuldades por estar falando de um texto metapsicológico, em que o inconsciente entra com um saber não-sabido. Basta lermos a primeira meia página do capítulo primeiro, para sentirmos certa hesitação do mestre (Freud, 1976b, pág. 107):
Na descrição das manifestações patológicas, o uso linguístico permite-nos distinguir sintomas de inibições, sem, contudo, atribuir-se grande importância à distinção. Na realidade, dificilmente poderíamos pensar que valeria a pena diferenciar exatamente entre os dois, não fosse o fato de encontrarmos moléstias nas quais observamos a presença de inibições, mas não de sintomas, e ficamos curiosos para saber a razão disso.
Os dois conceitos não se encontram no mesmo plano. A inibição tem uma relação especial com a função, não tendo necessariamente uma implicação patológica {...}. Um sintoma, por outro lado, realmente denota a presença de algum processo patológico. Assim, uma inibição pode ser também um sintoma. O uso linguístico, portanto, emprega a palavra inibição quando há uma simples redução de função, e sintoma quando uma função passou por alguma modificação inusitada. {...} Muito amiúde parece ser assunto bem arbitrário, quer ressaltemos o lado positivo de um processo patológico e chamemos o seu resultado de sintoma, quer ressaltemos seu lado negativo e intitulemos seu resultado de inibição. Mas tudo é realmente de pouco interesse e o problema, conforme o enunciamos, não nos leva muito longe.
Com certeza, Lacan leu esta página do Freud e fez mais uma crítica, a meu ver, também injusta. Deu a entender que Freud ficou inibido ao escrever sobre inibição, porque teria se restringido somente à inibição da locomoção, o que não é verdade. Freud falou de quatro funções inibidoras: a) na sexualidade, como episódios de frigidez na histeria, ou de impotência na neurose obsessiva; b) na nutrição, anorexia, bulimia e sintomas de vômitos; c) na locomoção, paralisias do aparelho motor; d) no trabalho, que pode tornar-se insuportável (Freud, 1976, pág. 107).
Lacan referiu-se também à inibição dos analisantes e dos analistas (Lacan, 2005b, pág. 19): Nossos sujeitos ficam inibidos quando nos falam de sua inibição, e nós mesmos o ficamos ao falar em congressos científicos. E acrescenta uma pergunta incômoda sobre a angústia do analista em sua prática (idem, ibidem, pág. 13): será que é a mesma do paciente? Por que não?
Pessoalmente, gosto deste texto, a começar pelo belo título: Inibição corresponde ao Imaginário do modelo do aparelho psíquico lacaniano; Sintoma corresponde ao Simbólico; Angústia é o Real. E reitero o conteúdo clínico do texto freudiano.
Curiosamente, os temas da inibição e angústia já eram explorados desde 1893, nas chamadas Publicações pré-psicanalíticas, no Rascunho B, possível rascunho das cartas de Freud para seu grande amigo Wilhelm Fliess, médico otorrinolaringologista, nas quais os dois já pesquisavam a etiologia das neuroses. Propunham que esta origem era ligada a causas sexuais, especialmente o “coito interrompido”, uma verdadeira praga na vida sexual naquela época. Neste texto, os conceitos de inibição e angústia já estão muito presentes (Freud, 1977, vol. I, pág. 253). Estas elaborações estão na base do que ainda se denomina a primeira teoria sobre a angústia, que seria causada pelo fato de a energia sexual não poder ser adequadamente descarregada.
Com a divulgação da psicanálise, em 1900, na Interpretação dos Sonhos, já ao final do Capítulo I, sobre As Fontes Somáticas dos Sonhos, Freud escreve (Freud, 1972a, vol. IV, pág. 253):
Certo dia tentava descobrir qual poderia ser o significado das sensações de estar inibido, de estar preso ao lugar, de não poder concluir alguma coisa, e assim por diante, que frequentemente ocorrem nos sonhos e se relacionam tão de perto com os sentimentos de angústia. Naquela noite, tive o seguinte sonho:
Eu estava vestido de forma muito incompleta e subia as escadas de um apartamento térreo para um andar mais alto. Eu subia três degraus de cada vez e estava contente com minha agilidade. Subitamente, vi uma criada descendo as escadas – isto é, vindo em minha direção. Fiquei envergonhado e tentei apressar-me e, neste ponto, instalou-se a sensação de estar inibido: Eu estava colado aos degraus e incapaz de sair do lugar.
O apartamento que aparece no sonho é o mesmo da residência vienense de Freud, na Rua Berggasse, 19. Era assim mesmo que ele se deslocava, todo final do dia, de seu consultório no segundo andar para o terceiro, de sua residência. Considera uma realização de desejo o fato de subir de três em três degraus, prova de bom funcionamento do coração. E subir agilmente as escadas era um contraste com a segunda parte do sonho em que, diante do aparecimento da criada, a inibição causa angústia e recalque. Há mais referências à inibição e angústia no texto dos Sonhos.
Hoje em dia, vigora uma segunda teoria sobre a angústia, defendida no texto que estamos discutindo, que afirma ser a angústia uma reação a um sinal de perigo. Qual perigo? A fonte pode ser externa ou interna, o perigo pode ser real ou pulsional. E fica a pergunta: é a inibição que nos causa angústia, ou é a angústia que nos inibe? Freud responde que a inibição é desencadeada pelo eu. Mas, como as pulsões também estão presentes nas fontes internas, tanto o ego consciente quanto o eu inconsciente podem ser causa da mesma. Não são fases de desenvolvimento, mas a estrutura de nosso aparelho psíquico é que administra os conflitos da inibição, do sintoma e da angústia.
Especificamente sobre as fontes externas inibitórias, Freud citou frequentemente as instituições milenares do Exército, no âmbito social, e da Igreja, no âmbito sexual, ameaças essas que podem ser introjetadas em nosso supereu, transformando-se em fontes internas também. Sem desprezar a pressão também da família, da escola, da política, das ideologias etc.
Na descrição do aparelho psíquico, feito na Interpretação dos sonhos (idem, ibidem, pág. 574), Freud aponta para duas direções chamadas de progressiva e regressiva. Ele desenhou, no modelo óptico, uma seta para a direção progressiva, da esquerda para a direita, mas se esqueceu de desenhar, embaixo dela, a seta regressiva, da direita para a esquerda. A progressiva afirma que o sonho começa com uma imagem quase sempre visual e progride para transformá-la em ideia, portanto, do imaginário para o simbólico. Mas, para interpretar o sonho, seguimos o caminho regressivo, contrário, usando ideias (absurdas?), deturpadas em novas imagens, que escondem e deformam seu verdadeiro significado, isto é, na direção do simbólico para o imaginário.
A seta aí em baixo do esquema, indica a direção progressiva, da percepção à consciência e ao inconsciente. Mas este capítulo tem o título de “Regressão”, esquecendo-se Freud de desenhar abaixo outra seta da direita para a esquerda (idem, ibidem, pág. 569).
Foi assim que Freud concebeu o recalque e o retorno do recalcado, progressiva e regressivamente.
O matema à esquerda encontra-se no Seminário 10, A angústia, pág. 320.
Á direita, capa do Seminário 10,
A angústia.
Com relação ao desenho da esquerda (acima), Lacan faz o seguinte comentário: Em toda fase analítica de reconstituição dos dados do desejo recalcado, numa regressão, haja uma faceta progressiva (Lacan, Seminário 10, pág. 321, 2005c). Então, o que viria primeiro: as inibições, os sintomas ou a angústia?
A banda de Moebius é a figura da direita, na qual, feita uma torção na emenda da fita, resultará que uma formiga caminhando na superfície estará ora do lado de fora, ora do lado de dentro, sem precisar sair pela lateral da banda. Dentro e fora não se opõem.
Segundo Freud, a angústia denuncia que nosso gozo com a mãe foi substituído pelo desejo. Mas, se somos histéricos, nosso desejo estará sempre insatisfeito e, se somos obsessivos, nosso desejo é sempre impossível, então, nunca escaparemos da angústia que, para Freud, é sempre “angústia de castração”, da falta que a castração criou em nós.
Já para Lacan, nossa economia desejante também não está alheia à nossa experiência de angústia. Donde podermos concluir que a angústia da mulher (gênero) é menor do que a do homem (gênero), porque a mulher não é castrada de todo, dada a incerteza sobre quem é seu pai. Alguém poderia objetar: com o avanço das ciências biológicas, na descoberta do DNA, não cai por terra a incerteza quanto ao pai? Não. Porque o teste de DNA só aponta para o genitor, aquele que transmitiu a genética. O pai, para a psicanálise, é um agente simbólico, descrito por Freud como aquele que deseja a mãe de uma criança, mantendo sua função de interdição do incesto e de garantidor da filiação nascida de seu próprio desejo com relação àquela criança. Assim, genitor não é sinônimo de pai, e genitora pode ser só “barriga de aluguel”. A maternidade e paternidade biológicas têm que incluir a adoção.
Além disso, a psicanálise reitera a sabedoria da Mitologia, onde Tirésias afirmava que “a mulher goza sete vezes mais que o homem”. E Lacan (idem ibidem, pág. 202) aprofunda mais a questão, dizendo: A mulher revela-se superior no campo do gozo, uma vez que seu vínculo com o nó do desejo é bem mais frouxo. E acrescenta (idem, pág. 331): O gozo da mulher está nela mesma.
Por fim, a tese básica do Seminário sobre a Angústia é: A angústia está ligada a eu não saber que ‘objeto a’ sou para o desejo do Outro (Lacan, Seminário 10, 2005d, pág. 353). Esse outro pode ser escrito em minúscula, o outro, nosso vizinho, ou com maiúscula, nosso inconsciente, nossa linguagem. Entretanto, há duas formas de angústia. Além daquela apontada por Freud, na qual a castração nos torna neuróticos pelo mal-estar da falta, para Lacan a pior angústia é a da ‘falta da falta’, a ausência de castração, que nos faz psicóticos. Resumindo: Para Lacan (idem, ibidem, pág. 178), o capítulo XII intitula-se: a angústia é sinal do Real (a morte?).
Bibliografia
Freud, S. Inibições, sintomas e ansiedade, Imago, R.J. v. XX, 1976.
Roudinesco, E. Dicionário de Psicanálise, Zahar, R.J. 1988.
Lacan, J. Seminário 10, A Angústia, Zahar, R.J. 2005a.
Freud, S. Inibições, sintomas e ansiedade, Imago, R.J. v. XX, 1976.
Lacan, J. Seminário 10, A angústia, Zahar, R.J. 2005b.
Freud, S. Rascunho B, Imago, R.J., v. I, 1977.
Freud, S. Interpretação dos sonhos, Imago, v. IV, 1972.
Freud, S. Interpretação dos sonhos, Imago, v. V, 1972.
Lacan, J. Seminário 10, A Angústia, Zahar, R.J.2005c.
Lacan, J. Seminário 10, A Angústia, Zahar, R.J. 2005d.
Obs. As citações dos textos de Freud e Lacan são referências ás Obras Completas e aos Seminários editados, respetivamente, pela Imago e pela Zahar, no Brasil.
Trabalho apresentado na Aula Magna de abertura do 6º ano do Curso de Psicanálise na C0PSIMO, Comunidade Psicanalítica de Moçambique, dia 09 de março de 2024, na capital Maputo.