Cultura do Estupro
Texto apresentado no Café Lacaniano, na Livraria Cultura do Shopping Iguatemi, no dia 23 julho de 2016
“Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei este direito,
sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões
que me dê gosto de nele saciar” (Marquês de Sade).
A questão do estupro levanta um questionamento ético relativo ao consentimento das partes envolvidas. O imperativo sadiano (1740) citado acima, defende uma lei particular, e foi contraposto ao imperativo kantiano (1724), que propugna por uma máxima universal: “Aja de tal maneira que tua ação possa servir de máxima para todos”. Portanto, a proposta de Sade só teria sentido se todas as pessoas concordassem. Sem o consentimento, qualquer violência caracteriza o estupro, mesmo sem o intercurso sexual.
Na realidade, o Marquês de Sade não fazia apologia de sua máxima. Simplesmente, como advogado do Diabo, provocava a discussão filosófica sobre o limite da liberdade humana, antecipando o ideário da Revolução Francesa (1789). Defensor do direito humano de tentar satisfazer seus desejos, Sade é eleito por Lacan como o padroeiro dos psicanalistas, e sua foto ilustra a capa do Seminário VII de Lacan, intitulado “Ética da Psicanálise”.
De fato, a proposta sadiana foi aceita como legítima em toda a história das guerras mitológicas ou humanas, sob o pretexto de que os lutadores, cansados, após longa abstinência sexual, tinham o direito de relaxar e gozar de qualquer mulher que encontrassem, como prêmio merecido.
Mas o conceito de cultura dá margem a ambiguidades. A única certeza é que ela se opõe ao conceito de natureza. A natureza se sustenta com relação aos instintos animais, estereotipados e fixos, mas, no ser humano, ela se dissolve e se reorganiza pela cultura, transformando os instintos em pulsões, de tal maneira que uma cultura sempre pode modificar-se.
O principal significado de cultura aponta para agricultura, o cultivo da terra, monocultura etc. Só metaforicamente aplica-se a um conjunto de conhecimentos, comportamentos, crenças e costumes de numa pessoa ou grupo social. Também é registrado como sinônimo de civilização, em dicionários das línguas portuguesa e francesa.
Freud (1974a, p. 16) deixou claro que não fazia distinção entre estes dois conceitos: [...] desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização, o que facilitou que seu texto original Das Unbehagen in der Kultur, O mal-estar na cultura, Freud (1974b, p. 75) fosse traduzido para o inglês e o português como O mal-estar na civilização. A tradução espanhola manteve o original (El mal-estar en la cultura).
Numa nota introdutória ao texto O futuro de uma ilusão, de Freud (1974ª. p. 14), o editor inglês esclarece que optou por ‘civilização’ para o substantivo, e ‘cultural’ para o adjetivo. Isto nos autoriza a uma distinção entre os dois conceitos, já que um adjetivo acrescenta algo a um substantivo. Poderíamos, então, falar de cultura do estupro, mas não de civilização do estupro, ressalvando que a cultura do estupro não significa o cultivo ou apologia desta excrescente covardia que é o estupro. O fato de estarmos discutindo sobre o estupro nos autoriza a falar de cultura do estupro, já que utilizamos da linguagem para este debate.
Civilização seria, então, uma referência a um período cultural passado da história, como a civilização egípcia, ligado à diacronia, enquanto que a cultura se limitaria a uma contemporaneidade sincrônica e localizada, como cultura francesa. Por exemplo, Freud viveu numa cultura vitoriana, Lacan personificou uma cultura libertina e, hoje, podemos falar numa cultura do empoderamento da mulher desejante.
Na Bíblia
Vários livros da Bíblia relatam fatos de estupro, como sendo um comportamento “comum”: Gênesis, cap. XIX e XXXIV; Juízes, XI e XIX; Samuel, cap.XIII; Daniel, cap. XIII; Zacarias, cap. XIV.
Atendo-nos somente a alguns desses relatos, encontramos na Bíblia de Jerusalém (2016, Gênesis, cap. XIX, v. 4-8), ao descrever a destruição de Sodoma, a primeira referência a estupro coletivo de homens e mulheres:
[...] “a casa foi cercada pelos homens da cidade, os homens de Sodoma, desde os jovens até os velhos, todo o povo sem exceção. Chamaram Ló e lhe disseram: onde estão os homens que vieram para tua casa esta noite? Traze-os para que deles abusemos. Ló saiu à porta e, fechando-a atrás de si, disse-lhes: Suplico-vos, meus irmãos, não façais o mal! Ouvi: tenho duas filhas que ainda são virgens; eu vo-las trarei: fazei-lhes o que bem vos parecer, mas a estes homens nada façais”.
Neste mesmo capítulo, (idem, ibidem, v. 30-36), é descrita a origem dos moabitas e dos amonitas, descendentes de Ló, onde o estupro se junta com o incesto, da seguinte maneira:
“Ló subiu de Segor e [...] se instalou numa caverna, ele e suas duas filhas. A mais velha disse à mais nova: Nosso pai é idoso e não há homem na terra que venha unir-se a nós, segundo o costume de todo o mundo. Vem, façamos nosso pai beber vinho e deitemo-nos com ele; assim, suscitaremos uma descendência de nosso pai. Elas fizeram seu pai beber vinho, naquela noite, e a mais velha veio deitar-se junto de seu pai, que não percebeu nem quando ela se deitou, nem quando se levantou. No dia seguinte, a mais velha disse à mais nova: Na noite passada eu dormi com meu pai; façamo-lo beber vinho também nesta noite e vai deitar-te com ele; assim suscitaremos uma descendência de nosso pai. Elas fizeram seu pai beber vinho também naquela noite, e a menor deitou-se junto dele, que não percebeu nem quando ela se deitou, nem quando se levantou. As duas filhas de Ló ficaram grávidas de seu pai”.
Mais adiante, (idem, cap. XXXIV, v. 1-2), temos um relato de violência: “Dina, a filha que Lia havia dado a Jacó, saiu para ir ver as filhas da terra. Siquém, o filho de Hemor, o heveu, príncipe da terra, tendo-a visto, tomou-a, dormiu com ela e lhe fez violência”.
No livro dos Juízes (idem, cap. XIX, v. 22-30), lemos o seguinte relato:
[...] eis que surgiram alguns vagabundos da cidade, fazendo tumulto ao redor da casa e, batendo na porta com golpes seguidos, diziam ao velho, dono da casa: “Faze sair o homem que está contigo, para que o conheçamos”. Então o dono da casa saiu e lhes disse: “Não, irmãos meus, rogo-vos, não pratiqueis um crime [...] Aqui está minha filha, que é virgem. Eu a entrego a vós. Abusai dela e fazei o que vos aprouver, mas não pratiqueis com este homem uma tal infâmia”. Não quiseram ouvi-lo. Então o homem tomou sua concubina e a levou para fora. Eles a conheceram e abusaram dela toda a noite até de manhã. [...] causando a sua morte. [...] Pela manhã, a mulher veio cair à porta da casa do homem com quem estava seu marido, e ali ficou até vir o dia. De manhã, seu marido se levantou, e disse-lhe: Levanta-te e partamos. Não houve resposta. [...] Então, ele a colocou sobre seu jumento e se pôs a caminho de casa. Ao chegar, apanhou um cutelo e, pegando a concubina, a retalhou, membro por membro, em doze pedaços, e os remeteu a todo o território de Israel.
No livro 2 Crônicas (idem, cap. XI, v. 18-21), consta:
Roboão tomou por esposa Maalat. [...] Depois dela, tomou por esposa Maaca. [...] ele teve dezoito mulheres e sessenta concubinas, e gerou vinte e oito filhos e sessenta filhas.
Na Mitologia
Não faltam relatos de estupro na Mitologia. De acordo com a coleção “Mitologia” (1973), vários casos são relatados de estupros entre deuses e mulheres mortais:
- Dânae. “O rei de Argos, Acrísio, atormentado por não ter filho varão que herdasse seus domínios, foi a Delfos para consultar o oráculo se ele ainda teria um filho. A resposta foi que não teria um filho e que seria morto pelas mãos do neto. Para evitar esta desgraça, ele decidiu impedir que sua única filha Dânae se casasse. Afastando os muitos pretendentes pela beleza dela, o pai constrói uma torre de bronze onde prendeu a filha. A profunda tristeza de Dânae comoveu o coração de Zeus (Júpiter), que se apaixonou por ela, disfarçou-se como uma chuva de ouro, gotas douradas de paixão e, por uma estreita fenda do cárcere, entrou no aposento, possuiu a amada Dânae, e nela gerou um filho, Perseu”. (idem, vol. I, p. 62 e vol. II, p. 449).
- Leda. “Após a morte de Ébalo, rei de Esparta, seu filho Tíndaro luta para assumir o trono, mas Hipocoonte, filho ilegítimo de Ébalo com uma ninfa desconhecida, usurpa a herança e expulsa Tíndaro, que se refugia na corte de Téstio, rei do Calidão. Mas Tíndaro apaixona-se e se casa com Leda, a filha de Téstio. Após a noite nupcial, a noiva entusiasmada arranca as vestes e atira-se nua às águas de um lago. Júpiter a vê e se apaixona. Sabendo que a recém-casada era fiel ao esposo e não aceitaria uma sedução, Zeus transforma-se num lindo cisne e aproxima-se de Leda. Encantada com a beleza da ave, Leda recolhe-a em seu colo macio. Antes que ela percebesse, Júpiter fecundou-a. Meses depois, Leda sente contrações no ventre e adormece. Quando acorda, tinha parido dois ovos envoltos em sangue, cada um com dois filhos gêmeos: de um dos ovos nasceram Castor (filho de Tíndaro) e Helena (filha de Zeus), que choram ao primeiro contato com a vida; do outro ovo, Pólux (filho de Zeus) e Clitemnestra (filha de Tíndaro) espiam o mundo em silêncio. Na época, havia superstições a respeito do nascimento de gêmeos. Diante deste mistério biológico, interpretava-se que se tratava de graça ou de maldição divina. E pela cultura da época, o papel da mulher era de escrava do homem.” (idem, vol. III, p. 577).
-Europa. “Numa praia de Tiro, um grupo de moças se diverte. A mais bela, Europa, dança e canta, lançando pétalas de flores para as companheiras. Surge um touro branco que assusta a todas, menos Europa, que se aproxima dele, talvez suspeitando que era um disfarce de Júpiter. O touro era manso e terno. Europa monta nele. O animal foge em disparada levando Europa para a praia de Creta, onde ele a engravidou”. (idem, vol. I, p. 60).
- Alcmena. “Está trancada em seu quarto, com saudade de seu marido, Anfitrião, que ela incentivou a ir para a guerra para vingar a morte de seu irmão. Naquele momento, ela está arrependida de apoiar a ausência do marido, e deseja que ele volte. Nisto, um homem se aproxima e abre a janela. Alcmena grita de susto, mas quando o vê, julga ser seu marido que retorna. Este conta as histórias da guerra, ela se entusiasma e entrega-se a ele. Só muito depois é que ela percebe que o visitante era Júpiter disfarçado, apaixonado, que fez a noite durar três dias completos, ordenando ao sol que não se levantasse enquanto fazia amor com ela. Desse encontro, nasceu Hércules”. (idem, vol. I, p. 257).
- Reia Sílvia. “O rei Procas está moribundo e dividindo a herança entre os filhos Numitor e Amúlio. O primeiro receberá o reino, e o segundo ficará com os tesouros. Mas Amúlio usurpa o trono. Numitor foge, deixando seus dois filhos com Amúlio. Temendo que o sobrinho viesse a lhe tomar o trono, manda matá-lo. Quanto à sobrinha Reia Sílvia, temendo que ela tenha descendentes que ameacem o trono, obriga-a a tornar-se vestal, consagrada à castidade. Num de seus passeios à procura de água para o sacrifício à Vesta, Reia é vista pelo deus Marte que, subitamente enamorado e usando de violência, possui a jovem, gerando nela dois gêmeos. Amúlio manda colocá-los numa cesta e atirá-los ao rio Tibre. Encontrados por uma loba, Rômulo e Remo são amamentados por ela e fundam a cidade de Roma”. (idem, vol. III, p. 689).
Surge uma reação à tese da submissão da mulher. “A heroína grega Atalanta rebelou-se contra a condição de escrava do homem, tornando-se precursora de uma nova mulher, que abandona seu papel de peso morto na sociedade, passa a participar ativamente na vida pública, não precisando casar-se para valorizar os próprios feitos ou para dar sentido à sua existência. Ela foi precursora das Amazonas, mulheres guerreiras que enjeitavam os filhos varões e queimavam o seio direito para poderem mais facilmente atirar com o arco”. (idem, vol. III, p. 580).
Segundo Brandão (3º vol. 1997, p. 58), os heróis tinham uma proverbial polifagia, um apetite sexual voraz, como no caso de Héracles que, numa só noite, fecundou cinquenta mulheres. Havia também o rapto de mulheres. E as mulheres também cometiam adultérios, inclusive numerosos, como no caso de Penélope, “a fiel esposa de Ulisses”. Os adultérios, incestos, estupros e homicídios eram praticados com a consciência tranquila, independente de as vítimas serem deusas ou humanas. Os motivos destes crimes eram: inveja, ciúmes, vingança, loucura ou por encomenda. Por outro lado, contrastando com esta fome sexual, o herói podia perder sua virilidade, por motivos psicológicos (pág. 59), dando origem ao conceito de impotência heróica. Este foi o caso de Íficlo, que poderia levar Freud a criar um termo psicanalítico Complexo de Íficlo, em vez de Complexo de castração”.
E de acordo com Houaiss (2009, p. 1069 e 1785), existem estupros imaginários e demoníacos: são pesadelos que, segundo a crença popular, seriam provocados pelo demônio, que assume a forma masculina e se apodera das mulheres adormecidas, levando-as ao pecado da carne. São os íncubos.
Há também os súcubos: demônios que supostamente tomam a forma de mulher e vêm perturbar o sono dos homens, mantendo com eles conjunção carnal.
No Brasil
O colunista da Folha de São Paulo, Cony (2016), dia 19 de junho, publicou que o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, Pero Vaz Caminha, escreveu ao Rei de Portugal, dizendo que “nossas índias possuem o sexo cerradinho”.
Como resposta a Pero Vaz, em recente passeata contra o estupro coletivo do Rio de Janeiro, em junho de 2016, um cartaz dizia: “A mulher não é só um buraco”.
Na mitologia amazônica, existe o estupro “ecológico”: o boto seduz as moças ribeirinhas, atraindo-as para os afluentes do rio Amazonas, e torna-se o pai de todos os filhos de paternidade ignorada. Nas primeiras horas da noite, o boto transforma-se num rapaz bonito, exímio dançarino e bebedor, e vai aos bailes. Aí conversa, namora – sempre bebendo muito, e acaba seduzindo as moças, com as quais marca encontros, a que nunca falta. Tem de ser antes da madrugada, porque, quando chega essa hora, o sedutor pula n’água e volta a ser boto. (Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1998, p. 863).
No país, em geral, temos também o estupro político, dentro da cultura da corrupção, quando políticos e empresários apropriam-se do dinheiro do povo de baixo nível socioeconômico, para benefícios de enriquecimento pessoal ou empresarial.
Na Psicanálise
Ao final do séc. XIX, Freud inicia sua trajetória em busca da psicanálise. A porta de entrada foi a histeria. Depois de fazer um estágio sobre hipnose, com Charcot, em Paris, Freud se depara com a cultura machista patriarcal desta época, que propunha o tradicional remédio para a histeria, ou para a insatisfação da mulher, que era: (penis dosim repetatur), repita-se uma dose de pênis, ou de estupro? O que teria acontecido se aqueles doutores tivessem percebido que a insatisfação histérica é estrutural em todos os seres humanos? Estariam aqueles homens ilustres dispostos a usar este mesmo medicamento com frequência? Por isso, não foi casual a forte reação daqueles doutores quando Freud falou da histeria masculina.
Equivocadamente, mas providencialmente, e influenciado pela cultura machista, Freud cria o conceito de “inveja do pênis” por parte das mulheres. Surge outra reação imediata das próprias mulheres psicanalistas e das feministas, denunciando a miopia de Freud que, entretanto, provocou uma fecunda discussão que se prolonga até hoje, sobre o desejo da mulher, assunto nunca antes discutido.
Além disso, a proposta da psicanálise de dar chance às histéricas de falar, em vez de terem que escutar o discurso masculino, de poder autoritário sobre elas, significou uma mudança de paradigma que marcou uma ruptura na cultura da inferioridade da mulher. A partir daí, a inveja do pênis passou a ser entendida como uma justa exigência de igualdade de direitos e de poder, uma ferida no narcisismo masculino da superioridade, e o início de um movimento sem volta, na direção do empoderamento feminino.
Freud sempre fez duras críticas à sexualidade masculina. Recusou os pedidos dos pais de Dora e da Jovem homossexual, que esperavam dele a domesticação de suas filhas que, supostamente, se desviavam do comportamento esperado por eles.
Num famoso texto sobre a psicologia do amor, Freud (1912, p. 166-168) parece estar se referindo à prática do estupro, quando desenvolve o conceito de impotência psíquica:
Toda a esfera do amor, nessas pessoas, permanece dividida em duas direções: [...] Quando amam, não desejam, e quando desejam, não podem amar. Procuram objetos que não precisem amar. [...] A principal medida protetora contra essa perturbação a que os homens recorrem nessa divisão de seu amor consiste na depreciação do objeto sexual, [...] que degradam a mãe ao nível de uma prostituta. [...] O homem só desenvolve potência completa quando se acha com um objeto sexual depreciado; e isto, por sua vez, é causado, em parte, pela entrada de componentes perversos em seus objetivos sexuais.
Reforçando a tese da sexualidade perversa do homem, Lacan (1982, p. 98) diz que O ato de amor, é a perversão polimorfa do macho, isto entre os seres falantes. Nada há de mais seguro, de mais coerente, de mais estrito quanto ao discurso freudiano.
Freud (1974c, p. 375) publica texto pioneiro, em que defende a tese de que um sentimento de culpa pode levar alguém a cometer um crime real para assim se punir da culpa inconsciente. Este raciocínio original pode explicar a motivação inconsciente de alguns casos de estupro.
Por mais paradoxal que isso possa parecer, devo sustentar que o sentimento de culpa se encontrava presente antes da ação má, não tendo surgido a partir dela, mas, inversamente, a iniquidade decorreu do sentimento de culpa.
Numa história simpática aos surrealistas, Cesarotto (2010, p. 62) relata que, na França,
No começo da década de 1930, um caso de polícia tomou conta do interesse dos cidadãos bem-pensantes e melhor intencionados. Uma moça, de origem burguesa, tinha assassinado o pai, a quem acusava de a ter violentado. Seu nome: Violette Nozières. Os surrealistas tomaram o partido de sua defesa, e Breton dedicou-lhe um poema. Deste, a frase-chave: “... O senhor Nozières ... havia escolhido para sua filha um nome em cuja primeira parte pode-se deduzir psicanaliticamente seu programa...” (Violer, em francês, quer dizer violar...).
Neste caso, Violette assassinou o pai alegando suposto desejo dele de abusar dela, expresso já na escolha do nome. Ela foi inocentada.
Aplicando à psicanálise seus próprios princípios, podemos pensar que a hipótese da inveja do pênis, atribuída às mulheres, pode não passar de um “retorno em direção ao próprio eu”, que é um dos destinos reservados às pulsões, segundo Freud (1974d, p. 147). Sendo assim, atribuir à mulher uma inveja do pênis poderia ser simplesmente uma projeção de uma inveja que o homem tem da mulher. Ferido no narcisismo de Sua Majestade, o bebê, diz Freud (1974e, p. 108), e perdida também sua majestade fálica, Sua Majestade, o Ego, acrescenta Freud (1976a, p. 155), o homem agride a mulher, sua concorrente vencedora. A agressividade é consequência do narcisismo.
Lacan (1982, p. 99) reforça este argumento, referindo-se assim às mulheres: [...] Estaríamos bem errados em não ver que, contrariamente ao que se diz, de qualquer modo são elas que possuem os homens.
Voltando à mitologia, uma questão que se colocava era: quem goza mais, o homem ou a mulher? O poeta latino Ovide (2011, p. 127), em seu livro Les Metamorfoses, conta a lenda de Tirésias (Teresa, Tereso), o adivinho de Tebas e conselheiro de Édipo, que foi o decifrador desta questão. Caminhava ele calmamente pelo monte Cilene, quando se deparou com duas serpentes em acasalamento. Temendo ser picado, matou a fêmea com um bastão. Para sua surpresa, se viu metamorfoseado em mulher. Sete anos depois, no mesmo lugar, encontra o macho, e o mata. Nova surpresa, ele retorna à condição masculina.
Quando a deusa Juno discutia com Júpiter, por causa das infidelidades deste, Júpiter se justificava, dizendo que, apesar disto, ela gozava mais que ele nos encontros sexuais. Mantida a dúvida sobre quem goza mais, o homem ou a mulher, e não conseguindo acordo, resolveram chamar Tirésias, aquele que tivera experiência própria masculina e feminina. E a resposta veio pronta: a mulher goza sete (ou nove, ou dez, segundo as versões) vezes mais que o homem. Júpiter, satisfeito, deu-lhe como recompensa o dom da adivinhação, mas, Juno, furiosa, castigou-o com a cegueira, por ter vazado uma informação que deveria ficar em segredo, só conhecida pelas mulheres. Na mitologia, a cegueira era condição de boa visão das coisas obscuras.
Passada a fase das teogonias politeístas, com mitos habitados por todo tipo de deuses e deusas, surge o monoteísmo, expulsando todas as divindades pagãs e introduzindo a crença em um só deus. Nasce, então, uma segunda mitologia, moderna, cujos personagens, agora antropológicos, estão nos contos de fadas. Escritos, aparentemente, para crianças, por adultos, tais contos transmitem para outras tantas gerações os conteúdos culturais que habitam o inconsciente da humanidade.
Branca de Neve e os sete anões, por exemplo, não são só os bonecos que enfeitam nossos jardins. É um conto rico de interpretações. De autoria desconhecida, que remonta a muitos séculos, está presente em todos os países e línguas europeias, de onde passou para outros continentes. Foram feitas várias versões, sendo mais confiável a dos alemães Jacob Grimm (1785-1863) e seu irmão Wilhelm. Sua melhor interpretação psicanalítica foi feita pelo austríaco Bettelheim (1980, p. 241), que analisou 15 dos principais contos de fadas. Eis a versão de Grimm:
“Era uma vez, no meio do inverno, quando a neve caía como plumas do céu, uma rainha que estava sentada perto de uma janela, cuja moldura era de ébano negro. Enquanto costurava olhando para a neve, picou o dedo com a agulha, e três gotas de sangue caíram na neve. O vermelho ficou tão lindo sobre a neve branca, que ela pensou: ‘Quisera eu ter uma filha branca como a neve, rosada como o sangue, e de cabelos negros como a madeira da janela’. Pouco depois, teve uma filha que era branca como a neve, rosada como o sangue e de cabelos negros como o ébano”.
Todo mundo conhece a sequência da história. A rainha morreu quando nasceu sua linda filha. O rei casa-se de novo, e a madrasta, sofrendo de ciúmes da menina, encarrega uns caçadores de eliminá-la, como fizeram os pais de Édipo. Aqui também os caçadores pouparam a menina. Mas vamos aos anões. Branca de Neve convive com sete anões que cuidam dela, ou ela cuida deles. Em todas as versões consultadas, exceto uma, não há referência a qualquer manifestação sexual entre ela e eles. A única alusão superficial é feita por Anne Sexton, que descreve os anões como “cachorros quentes e pequeninos”.
Proponho uma nova hipótese. Um detalhe da história conta que Branca de Neve experimentou dormir nas sete camas dos anões. Uma cama era curta, outra era comprida demais, e uma era de bom tamanho (mas ela conhecia todas). É sabido e consabido que os anões, no mundo inteiro, têm fama de forte potência sexual. Na história, consta que eles eram apaixonados pela mocinha. O número sete’ não poderia ser pensado como o “sete vezes mais” do gozo feminino, relatado por Tirésias, na primeira mitologia?
Conclusão
O conceito de inveja do pênis foi entendido de maneira equivocada pelos críticos de Freud. Antes dele, quando a medicina defendia a receita da dose de pênis, a referência era anatômica, ao órgão sexual masculino, porque acreditavam que a histeria era um transtorno do útero anatômico. A receita que Freud propôs era o contrário da cultura da época. Ele defendeu o direito da histérica de ter voz ativa para expressar seu desejo reprimido, um transtorno psíquico, um grito por igualdade de direitos com os homens.
Para Freud, esta equiparação com os homens não tinha como objetivo ter ou invejar o pênis, mas o falo, aquele falo que utilizou para definir a fase fálica, comum aos meninos e às meninas, que é o acesso à subjetividade e ao desejo, marca registrada da psicanálise.
Com relação às famosas fases do desenvolvimento, entendidas erroneamente como biológicas, Freud lhes atribuía um significado simbólico: na fase oral, tratava-se de um pedido do bebê à mãe, para livrá-lo de algum incômodo, por exemplo, a fome; na fase anal, tratava-se de um pedido dos pais ao bebê, que respondia dando-lhes o primeiro presente de sua autoria: o cocô feito no vaso; na fase fálica, comum a meninas e meninos, tratava-se da independência do sujeito em relação aos pais, assumindo a própria identidade e responsabilidade, bem como sua subjetividade pelo uso da linguagem (eu falo), dirigindo seu desejo a um outro objeto exogâmico, (um falo), como consequência da castração; na fase genital, a escolha propriamente sexual de um objeto de desejo, que faça a função de um falo simbólico.
Os homens precisam entender e aceitar que as mulheres, mesmo não tendo pênis, gozam sete vezes mais, têm orgasmos múltiplos, têm um gozo feminino próprio, e dispensam a presença de um falo minúsculo que não lhes faz falta e que, quando o desejarem, basta um aceno para o encontrarem. Estão enganados os estupradores quando pensam estar sendo generosos ao oferecer a elas algo que não as apetece e que elas consideram abusivo. E precisam entender que sua violência e covardia é uma inveja e uma agressão vingativa por não conseguirem ser aquele obscuro e apetecido objeto de desejo.
Lacan brinca com os significantes pênis-falo-Falo, indicando que o pênis refere-se ao órgão anatômico e real, enquanto que o falo (com minúscula) é uma suposta completude imaginária, que faz o ’bebê-homem’ sentir-se uma “majestade”, e um ser superior. Já o Falo (com maiúscula) é o significante simbólico do desejo, da falta que nos constitui como seres falantes.
O homem tem o falo, enquanto que a mulher é o Falo, o grande objeto de desejo. Ter (o falo) ou ser (o Falo), eis a questão.
Que tal concluir que são os homens que têm inveja de ser o Falo? Quem sabe eles já pressentem a falsidade de sua suposta potência e completude e, sabendo que seus dotes são imaginários, tentam demonstrar, através do estupro, que seu poder é real? E que esta ferida narcísica os decepciona e neles desencadeia a agressividade contra sua rival vencedora e criadora, relembrando suas antigas querelas infantis imaginárias, do tipo: “eu tenho, você não tem?”
Surge hoje novo conceito de estupro: o autoestupro. Ocorre quando alguém se priva de ter desejos, só para agradar o parceiro/a. Apesar de novo, este conceito tem alguma base em Freud (1974f, p. 105) quando afirmou que, com relação às mulheres, sua necessidade não se acha na direção de amar, mas de serem amadas, abdicando de seu próprio desejo. Não é diferente a posição de Lacan (1993, p. 70), quando afirma que as mulheres são conciliadoras: a tal ponto que não há limites às concessões que cada uma faz para um homem: de seu corpo, de sua alma, de seus bens.
O autoestupro ocorre,então, quando alguém insiste em ser fiel ao outro, sendo infiel a si mesmo.
Uma cultura atual do estupro delineia-se da seguinte maneira: ao contrário do que foi relatado na Bíblia, se a vítima é um homem, como ocorre com frequência nas penitenciárias, o fato é considerado sem importância, e nem é registrado na mídia. Se a vítima é uma mulher, como aconteceu recentemente no Rio de Janeiro, num estupro coletivo, a reação é nacional e internacional, com total repúdio na mídia e em manifestações públicas de protesto. Entretanto, nas Delegacias de Polícia, o interrogatório da vítima ainda costuma ser desrespeitoso e incriminatório para a mulher que, por sua vez, sente-se culpada, envergonhada, omissa ou muda.
E fica a última pergunta: por que acontecem as práticas do estupro, de sequestros, de terrorismos, de assassinatos, de guerras? Quando Einstein interrogou Freud (1976b, p. 254) sobre os motivos da guerra, recebeu como resposta: esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada. Portanto, merece, com toda seriedade, ser denominado instinto de morte.
Referências bibliográficas
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Mitologia – Abril Cultural, São Paulo, Victor Civita, 1973.
Ovide, Les Métamorphoses, Paris, Les Belles Lettres, 2011.
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Esplêndido!!!