O amor pode ser falado de formas distintas pelos poetas, pelos enamorados e pelos doentes. Estes últimos o dizem da forma mais dolorosa, através do sofrimento de seus corpos, pelo negativo do amor, seu lado avesso, sua denegação. Fechado dentro de si, emaranhado em suas próprias redes narcísicas, o doente só fala de amor pelo corpo que dói, que se contorce, que morre. Não faz diferença que sua doença seja mental ou orgânica. Aliás, qual é a diferença? Quem dividiu o ser humano em dois, corpo e mente? Tudo que há é uma pulsão que se representa e nisso consiste o existir humano, existir que nada mais é que um estar-fora-de-si. Este é o drama do ser vivente. A vida, no animal, é dada de uma só vez, de um só gole, toda a taça do real. O humano emerge de uma ruptura. Um rasgo que o separa de si mesmo. Não há esse corte simplista que a ciência preconiza entre corpo e mente. Tanto um quanto o outro são expressão de uma única função infinitamente humana: o simbólico.
O amor poderia ser designado como uma ‘semiótica dos afetos’, segundo terminologia usada por Julia Kristeva, no sentido de ser algo anterior ao significante, mas que permeia e só se atualiza mediante os significantes. É o que torna suportável a divisão inexorável do sujeito para com ele mesmo; ao mesmo tempo em que o abre, o articula, o conecta com o outro. Num mesmo movimento, o sujeito se apreende dividido e salvo pelo outro que o reconhece. O que circula nesse momento é da ordem da significância, não ainda dos significantes. Platão, no Timeu, já falava da existência de algo anterior à representação, um “receptáculo arcaico, móvel e instável, anterior ao UM e mesmo à sílaba, metaforicamente designado como alimentar e maternal” (1).
Nesse sentido, toda doença é uma doença semântica, uma doença de amor. Resgatando o sentido aristotélico da ‘paixão’, encontramos patologia, sofrimento que vem do amor, ‘eros doente’. Estar sob o efeito de uma paixão é estar imobilizado e passivo sob o domínio de um significante. Para Freud, o que distingue o amor da paixão seria a localização do objeto na função do ego ou do ideal do ego. No primeiro caso o ego se enriquece com as qualidades atribuídas ao objeto, mas mantém sua autonomia em relação a ele. No segundo caso o objeto se torna excessivamente libidinizado e é colocado no lugar do ideal do ego. É a paixão cega e desenfreada. A imagem do outro se torna absolutamente indispensável para sustentar a ilusão da unidade do sujeito consigo mesmo. Preso na armadilha do espelho, o apaixonado, ao perder sua imagem, mata ou morre. Por isto, diz Bataille, o que acompanha a paixão é sempre um halo de morte.
Historicamente a paixão foi compreendida ora como algo oposto ao Logos, enquanto potência inerente a todo ser humano, porém passível de ser dominada; ora como um estado patológico, doentio, adquirido e desviante da ‘normalidade’. Tida como um estado inferior, fenômeno irracional, tendência ou fraqueza da alma, a paixão, na antiguidade, esteve sob a jurisdição de uma ética derivada de uma certa compreensão do Logos que nada tem a ver com a nossa ‘razão’ atual. O Logos, na concepção grega, era a expressão de uma verdade ontológica -- palavra que leva à verdade do ser. Sua ética consistia, sobretudo, num saber canalizar as paixões, colocá-las a serviço do humano. O apaixonado era tido como um desregrado, não um demente.
Porém, um impasse havia sido criado. Se a paixão é um estado inerente a todo ser humano, como explicar a coexistência de princípios tão contrários como o Logos e o ‘alogon’? Se a razão é constitutiva da natureza humana, como pode surgir o irracional? Estas reflexões levaram os gregos à moderna concepção de representação, ou seja, é através da forma pela qual a representação de algo se inscreve em mim que se desencadeiam os afetos e surgem as paixões. Portanto, paixão é uma representação que vem do outro e se abate sobre o sujeito, imobilizando-o. O ‘pathos’ se torna então uma ‘tendência’, uma força que padece. E assim o ‘status’ de normalidade das paixões vai cedendo lugar ao patológico e surge a figura do terapeuta, aquele que se dispõe a ouvir ‘eros doente’. Seu trabalho consiste em restituir a justa proporção de amor (2) àquele que padece os seus excessos. O objetivo não é mais conduzí-lo ao caminho da virtude ou da sabedoria, mas de integrá-lo à vida e à sua própria verdade.
Sendo assim, como explicar a esquizofrenia que permeia toda nossa tradição racionalista e positivista, e que marcou os fundamentos daquilo que convencionamos chamar de ‘científico’? Como compreender as proibições que cercam a palavra ‘amor’, matriz da subjetividade, no contexto das ciências médicas que lidam justamente com as doenças do sujeito? No momento em que o Logos grego cedeu lugar à Ratio latina, algo maior que um movimento histórico e cultural ocorreu. Um ideal ascético se sobrepôs ao ideal ético dos gregos antigos, estabelecendo parâmetros para o estabelecimento de uma moral normativa, em detrimento da busca da verdade do sujeito. O que era antes um ‘continuum’ do corpo ao espírito, da paixão ao Logos, agora é dois: corpo e mente, razão e loucura.
Transportada para os domínios da razão, a verdade passou a ser objeto epistemológico, não mais reencontro do ser. Portanto, nesse contexto, as ciências médicas se dividiram naturalmente em medicina do corpo e da mente. Os afetos, não podendo mais serem encaixados em nenhuma hipótese razoável, foram descartados como irracionais. Não pertencem ao objeto das ciências.
Mesmo a loucura é tratada pela psiquiatria como uma doença da mente e do comportamento, sendo submetida a terapias de força, através de neurolépticos e dos ECT. Reduzida a seus componentes orgânicos, por um lado, ou a códigos de normalidade do comportamento, por outro, a subjetividade do paciente é achatada. Em cima dela, montões de outras subjetividades também achatadas, formando uma massa compacta e indiferenciada de pessoas que não pensam, não sentem, não falam. Contornando esta massa, as instituições se esquizofrenizam, se fortificam em torno de um real corpóreo e se fecham sobre o sujeito simbólico como em um sepulcro. Os manicômios são a face mais terrível de um racionalismo levado a seus limites extremos, onde razão e loucura confinam. Não se sabe ao certo onde uma começa e a outra acaba.
Numa das reuniões clínicas de um hospital psiquiátrico, onde estagiei, ocorreu um fato que poderia exemplificar esse momento de indiferenciação de limites, no qual geralmente desabam os pilares do poder diante dos caminhos que a loucura encontra para resistir. Sentados em círculo estavam os psiquiatras residentes e, ao meio, a cadeira onde deveria se sentar a paciente. Vamos chamá-la Clarisse. Ela foi trazida pela mão de uma enfermeira e portava o diagnóstico de esquizofrenia catatônica. Seu corpo estava rígido e só se movia segundo ordens que lhe eram dadas diretamente por alguma outra pessoa. Assim, não andava; era puxada. Não se sentava; era forçada para baixo. A comida lhe era colocada na boca e sozinha não conseguia tomar banho nem fazer suas necessidades. Desnecessário dizer que também não falava. Parecia um bebê desengonçado
Segundo relato da médica de plantão, Clarisse tinha 25 anos, era casada e tinha 2 filhos. Fora internada pelo marido que não sabia mais o que fazer diante do comportamento estranho dela. Desde que descobrira que ele tinha uma amante, ela foi ficando ‘esquisita’. Passou a não conversar com ninguém, não fazia os trabalhos domésticos e por último deu para tirar toda a roupa e ficar andando nua pela casa. Internada há um mês, apresentou rigidez catatônica e não pronunciou mais nenhuma palavra desde então. Estava tomando doses maciças de Haldol e não demonstrava sintomas de melhora nem de alteração no quadro clínico. Diante disso, decidiram aplicar ECT.
Durante toda a apresentação do caso Clarisse não respondeu a nenhuma das perguntas que o psiquiatra lhe fazia – como é seu nome? De onde você vem? Que dia é hoje? Você se lembra de mim? – ela apenas olhava para cada uma das pessoas ali sentadas à sua volta. Não saberia dizer o quanto ela estava entendendo do que se passava ali. Sua vida, assim como seu corpo, totalmente desprotegido dentro do camisolão branco do hospital, estava à mercê de decisões que seriam tomadas naquele momento.
No entanto, algo nela resistia. Ela e sua loucura resistiam a toda química que lhe introduziram no organismo; cada músculo de seu corpo resistia através da rigidez catatônica, à dissolução total, à morte. A doença é uma linguagem, dizia George Groddeck, médico contemporâneo de Freud. É o meio de que o ser humano dispõe para representar, com seu corpo, o terror que sente perante algo que o ameaça de dentro, uma catástrofe interior, um perigo de morte. A rigidez de Clarisse poderia significar a paralização de sua vida diante de um momento traumático. Impossibilitada de simbolizá-lo através da linguagem, ela o representava no teatro do seu corpo. Só que, ao ser internada num hospital de estrutura psiquiátrica, ela foi colocada no centro de um campo de batalha onde uma luta de poder se desenrolava. De um lado, as forças bélicas do arsenal psiquiátrico, com sua antropologia de cunho positivista, sua cegueira perante os caminhos que o desejo encontra para se representar, suas armas químicas e suas camisas de força. Do outro, o enigma da loucura. Um real que busca desesperadamente símbolos para ser.
Após terem levado Clarisse de volta par ao seu quarto, a enfermeira voltou correndo para contar um fato inusitado que acabava de acontecer no corredor. Uma das pacientes internadas no hospital se aproximou de Clarisse, passou o braço pela sua cintura carinhosamente e foram andando assim, as duas mulheres, em silêncio, abraçadas. Havia um banco no corredor e a amiga conduziu a outra para lá. Sentaram-se. A enfermeira observa a cena à distância. Já ia voltando para a sala de reuniões quando ouviu algumas risadas. A amiga de Clarisse lhe fazia cócegas pelo corpo, enquanto ela se contorcia toda e ria às gargalhadas...
O que fez rir Clarisse? O que fez com que ela retomasse o real de seu corpo e reagisse aos estímulos da amiga? Onde foi parar a esquizofrenia catatônica que a imobilizava havia já um mês? Os psiquiatras se entreolhavam em silêncio. Foi o Haldol? Que significa o riso de Clarisse? Devemos continuar com a mesma dosagem? E que tal o ECT? Sim... talvez... não... silêncio. Clarisse tomou 17 aplicações de ECT. Um dia teve alta. E foi embora. Possivelmente voltará.
Já no final do século passado, Freud se deparou com esse ‘elefante branco’ da psiquiatria e da medicina. A ‘talking cure’ surgiu num momento comparável à perda da onipotência científica onde, abandonados os instrumentos do poder, Freud se dispôs a ouvir a histérica. Nesse momento a psicanálise instaurava uma nova técnica, um novo modelo de ciência, onde a relação entre médico e paciente era presidida por um 3º elemento: o Outro.
Este novo objeto, o inconsciente, marcava toda a diferença entre fazer uma interpretação médica e o ato analítico. E, no cerne dessa diferença, Freud aprendeu algo que iria se constituir como o motor de uma análise, o eixo ao redor do qual um saber ia se constituindo. Algo que a psicanálise vem anunciando como a maior força em ação no tratamento, seja das doenças ditas orgânicas ou as mentais, mas que, por outro lado, configura também uma das maiores dificuldades para o manejo da ´técnica’ analítica: a transferência.
Esta descoberta de que o que move a cura é o amor e não o saber científico é tanto mais inquietante quanto provoca um abalo nas instâncias assentadas do ego, percebe o logro de suas certezas imaginárias e se depara com o desafio que representa a loucura vinda não mais de fora, do outro, mas dentro de si mesmo. É o encontro com esse ‘buraco negro’, não mais no espaço sideral, mas no fundo da condição humana, é esse abalo narcísico que torna possível o rearranjo de uma subjetividade em confronto com a vida. Não se trata, pois, de lutar contra a loucura e o delírio, já que estes são os fios de Ariadne para a verdade do enfermo. Desfazer a doença é, segundo Groddeck, refazer o percurso para a morte até o que foi a fonte da cegueira, e encontrar nesta cegueira a revelação do insustentável. A rigidez de Clarisse era uma forma de trazer à tona um afeto endurecido, sem nome. Possibilitar a sua fala seria o meio de reintroduzí-la no circuito da comunicação humana. Impedir que seu corpo fale através da doença seria reprimir o último recurso utilizado por ela para evitar a morte. Pois as mesmas forças que conduzem à morte são as que conduzem à vida.
Nisso se vê como a palavra não está separada do corpo e o “Verbo pode tocar a cada instante a carne – para o bem e para o mal” (3). A palavra transferencial faz efeito não porque está carregada de sabedoria, mas porque sua sabedoria advém do Outro.
Ainda causa espanto a afirmação de Freud de que a cura ocorre apesar do analista. Ninguém jamais poderá saber em que momento nem o quê provocou o desencadeamento do processo de cura. Falar de cura não me parece exato. Os efeitos de uma análise são sempre ‘a posteriori’ e imprevisíveis. Concordo com Groddeck quando ele fala em ‘cuidar’ e não em ‘curar’ seus pacientes. O que está em questão é muito mais amplo, no sentido em que se trata é de mudar a atitude do ser humano perante a doença, ‘devolver-lhe a forma humana, tanto a doença a deformou’ (4). Também para Freud, não se trata de curar. De que curar Clarisse? Dos efeitos de seu inconsciente? Quando se fala de humano está se falando de representação. O desejo de Clarisse, ao se mostrar despida para os outros, foi a forma que ela encontrou para falar, no real, do que não pôde ser simbolizado em sua história. Seu ato era um pedido. Olhem para mim. Me reconheçam. Me digam quem sou eu. Me ajudem a reencontrar meus referenciais, minha identidade perdida. Clarisse, de fato, estava nua. Perdera contato com suas roupagens simbólicas.
A genialidade de Freud, a meu ver, está em sua metapsicologia. Ao apontar para a chamada ‘pulsão de morte’ ele decifrou o fenômeno da repetição ao longo da vida e da compulsão que lhe dá origem. As peças do jogo foram se ajuntando. A emergência do sujeito na castração, a passagem do princípio do prazer ao da realidade, o recalque e a compulsão à repetição foram alguns dos eixos ao redor dos quais a psicanálise surgiu. Dentre eles, destacando-se a mola mestra do ato analítico, a transferência. Nela ‘a repetição ocorre como a colocação em ato de tudo que foi recalcado, permitindo a elaboração da repetição na análise e a rememoração das escolhas objetais infantis’ (5), assim como também dos fantasmas que são tecidas ao redor desta escolha. Por isto, não se trata de recordar, e sim, repetir. E a repetição somente ocorre no campo transferencial.
Por que falar de transferência e não de amor simplesmente? Pensar que as interdições que cercam o uso da palavra amor, nos meios científicos, têm a ver com sua tradição racionalista é simplificar o problema. O que causou indignação e escândalo em sua época foi ter Freud exposto à luz do dia as raízes sexuais do amor. Isto sim, abalou os fundamentos da moral vitoriana, estremeceu velhos recalques mantidos à força no fundo do baú dos espíritos positivistas.
Falar de transferência e não de amor simplesmente é saber colocar aquilo que afeta o sujeito, o afeto, em movimento, para que possa emergir de novo o amor na vida do paciente. Na neurose, o conflito entre a sexualidade e o ascetismo faz com que o lado sexual reprimido busque uma compensação na formação de sintomas (6). O ascetismo se torna então a moral repressora do amor, inibindo as pulsões sexuais e contrabandeando-as para o lado da dor, do sofrimento e da intolerância. Ao repetir a cena traumática em situação analítica, o paciente revive seus afetos recalcados, seja de amor ou ódio, de medo, angústia e morte. O analista se torna o espelho que lhe devolve o retrato falado de suas projeções fantasmáticas. Por isto, falar de transferência e não de amor simplesmente é falar de uma ‘técnica’ que tem por objeto o amor.
Isto evidentemente coloca muitas dificuldades. Como lidar come este instrumento tão móvel e escorregadio, que não tem nenhuma consistência material, não é quantificável nem controlável e que, no entanto, atual materialmente, produz efeitos no corpo e na vida de ambos, analista e paciente?
Embora o termo ‘contratransferência,’ usado por Freud para falar da transferência do analista, carregue junto conotações defensivas, não há como negar, ainda que fosse apenas pelo próprio tropeço do termo, as dificuldades inerentes a este processo recíproco no tratamento. A posição do analista, ainda que seja sustentada só pela resolução de seus próprios recalques, não o torna imune à transferência; apenas lhe permite melhores condições para se locomover dentro dela.
Pierre Fedida, numa conferência sobre o Amor e a Morte na Transferência, chama a atenção para dois pontos de suma importância numa análise. Primeiramente a posição de ambivalência do analista ao ocupar o ‘lugar do morto’, e ser ao mesmo tempo um corpo vivo e presente, o coloca permanentemente em perigo de cair numa posição dual e resvalar para uma relação de equívoco e sedução. Estar no atual mas sabendo que o sentido do inconsciente concerne ao inatual é o passo que permite bem conduzir uma análise. O analista sedutor cai na ambiguidade quando dá o atual como resposta ao inatual. Diante de uma confissão de amor ou de um ataque de raiva, ele se defende, dizendo que não é ele que o paciente visa e sim, seu pai ou sua mãe. Ou então, que ele não fez nada que provocasse tais sentimentos e que não é responsável por isto. Defendendo-se ele se coloca numa posição dual, de resistência, seu ego fazendo obstáculo a que, por ele, passe o Outro. A angústia do paciente diante desses atos de sedução, os mesmos que o fizeram adoecer, cresce na proporção em que começa a duvidar daquilo que sente no real de seu corpo, de seus sentimentos, de si mesmo.
Lacan insiste na ideia de que toda resistência, numa análise, é resistência do analista. Algo nele provocou obstáculo, seja uma palavra dita ou não-dita, ‘como o ocultamento dos símbolos que operam nesse momento’ (7). Freud, em vários textos onde faz menção a esta resistência como parada associativa (8), liga essa parada associativa a uma forma de resistir à emergência do recalque e atribui este silêncio ao fantasma persistente de uma posição feminina de passividade. Só que esta resistência, colocada em ato na análise, foi vista por Freud somente enquanto pertinente ao paciente, e não ao analista também. No entanto, sabemos que a disposição passiva, naquilo que supõe de aceitação da castração, é algo que concerne principalmente ao analista na medida em que é esta posição que irá permitir que o mesmo ocorra do lado do paciente. Só na medida em que um se deixa penetrar pelas palavras do outro é que o analítico se instala. A escuta psicanalítica implica, pois, na recuperação do feminino, na aceitação da passividade no circuito do desejo; e passividade é uma palavra que traz em seu bojo, a paz.
Na sequência de sua exposição, Pierre Fedida fala da concepção de amor em psicanálise. Resguardando-se da ideia de que a psicanálise seja uma ‘erotologia’, ele acentua os riscos de se buscar uma síntese para as pulsões, que são, por sua própria natureza, fragmentárias. A filosofia, a mística, as religiões representam tentativas de reunir aquilo que foi inexoravelmente separado. Criações do imaginário, as ideias de unidade absoluta são apaziguantes, na medida em que instituem pontes sobre o hiato.
Mas não existe solução possível para o amor senão tomá-lo, como o faz a psicanálise, como abertura para o simbólico. O processo analítico possibilita o encontro com angústias muito arcaicas do ser humano, como sensações de esfacelamento e fragmentação guardados no vivo do corpo e revividas intensamente na transferência. O amor surge como resistência, segundo Fedida, na medida em que o paciente evoca um estado de enamoramento febril para tentar (re)fazer, com o analista, uma unidade impossível.
Penso que o amor existe para que o desejo se torne suportável. No início dessa escrita eu me referi a diferentes falas de amor. Fiz um longo percurso pela patologia, como quem afina o seu instrumento, estica as cordas, busca o brilho dos metais, para que os sons passem mais puros. Pois que a fala de amor dos doentes exige um instrumento de escuta diferenciada. E é a recuperação de sua capacidade plena de amar o que o leva às outras falas, a do enamorado e à do poeta.
Resta dizer, não sem um toque de frustração, que o amor urde uma trama em torno de um objeto que, afinal, somos nós mesmos. O encanto do outro não é mais que o reflexo invertido de nosso próprio encantamento. Um jeito de olhar, uma certa tonalidade da pele, alguma particularidade do corpo, a cor dos cabelos, não são mais que as metáforas do desejo. O outro – é necessário que eu o ame para que ele me devolva a mim. Senão estarei perdida.
Um amigo poeta, um dia, enviou-me estas palavras: “... só a poesia nos salva” (9). Como eu sabia de suas preocupações sociais e políticas naquele momento, assim como de seu comprometimento com a causa cultural do povo de sua terra, compreendi também o quanto a linguagem poética é propriamente humana, na medida em que consegue articular, através de seus recursos metafóricos e metonímicos, os três registros onde o desejo se inscreve: o real, o imaginário e o simbólico. A linguagem poética é universal posto que faz emergir o humano da densidade, da gravidade que o prende ao chão. Trata-se daquela instância que o humano só atinge porque atingido pela castração. Diante do inexorável da perda, para não morrer, ele fala. E com a palavra ele reascende as estrelas para pensar que é lá fora que existe luz. Com este engodo os poetas brincam. E nos salvam. E tudo que fazem é mostrar o tempo todo que é a fala o caminho que nos salva. Assim, o fim de uma análise talvez não seja só formar analistas, como disse Lacan, mas principalmente, transformá-los em poetas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1) No princípio era o Amor, Julia Kristeva, pág. 13
2) Texto de Conferência proferida por Pierre Fedida no Brasil, ainda inédito
3) No princípio era o Amor, Julia Kristeva, pág. 15
4) A doença como linguagem, George Groddeck, pág 34
5) Nos limites da transferência, Juan David Nasio, pág 34
6) A doença como linguagem, George Groddeck, pág 97
7) Homem dos Lobos; Rememoração, Repetição, Elaboração; Bate-se numa criança; Análise Terminável e Interminável, S. Freud
8) Chico Alves, Natal, RN, 12/1988
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BIBLIOGRAFIA COONSULTADA
D´EPINAY, Michèle Lalive, “Groddeck, a doença como linguagem”, ed. Papirus, Campinas, 1988
FREUD, Sigmund, “Obras Completas”, Ed. Biblioteca Nueva, Madrid, Espanha, 1981
FOUCALT, Michel, “História da Sexualidade”, Graal Editora, Rio de Janeiro, 1984
NASIO, Juan David, “Nos limites da transferência”, ed. Papirus, Campinas, 1987
PLATÃO, “Diálogos”, ed Tecnoprint S.A. Coleção Universidade
FEDIDA, Pierre, “O amor e a morte na transferência” texto inédito.
KRISTEVA, Julia, “No princípio era o Amor”, ed. Brasiliense, São Paulo, 1987.