DesAforismos de Lacan
26 de setembro de 2015
Derivado do grego, o termo ‘aforismo’ significa sentença, máxima, apotegma que, em poucas palavras transmite uma mensagem complexa, não necessariamente completa. Quando dizemos, por exemplo, que o dinheiro não traz felicidade, é bom acrescentar: mas ajuda. Freud nos legou um famoso: “O que quer uma mulher?” Bem antes de Freud, esta pergunta tinha recebido uma resposta, conforme consta na lenda do Rei Artur, século VI. O Rei de Gales liderou a resistência dos celtas contra os anglo-saxões, e seus feitos brilhantes foram enaltecidos pelos poetas e narradores do chamado Ciclo bretão ou Ciclo da Távola redonda, incluída a procura do santo Graal.
Diz a lenda que o Rei foi desafiado a descobrir “o que quer uma mulher”, sob pena de perder a vida. Confiante em sua bravura, aceitou o desafio. Mas seu maior amigo oferece-se a assumir o compromisso, dispondo-se a morrer, para salvar a vida de Artur, já que ninguém acreditava que ele teria a resposta.
O amigo parte para longa viagem, perguntando às mulheres que encontrava qual era a resposta enigmática. Depois de muita pesquisa, encontrou uma mulher feia como uma bruxa, disposta a revelar o segredo. Ela só fez uma exigência: casar-se com ele. Ele pensou bastante, mas aceitou. Ela então falou: “a mulher quer ter autonomia no seu próprio desejo”. Após a cerimônia do casamento, quando iam se recolher aos aposentos, ela ainda disse: Falta ainda decidir uma última coisa: eu fui amaldiçoada por descobrir este segredo, e meu castigo é passar metade do dia como bruxa, e metade como rainha. O que você prefere: que eu seja rainha só durante o dia, para você me exibir aos amigos, ou que eu seja rainha só à noite, para você dormir comigo. Resposta: “você decide”. Neste momento, desfez-se a maldição e ela se tornou definitivamente uma bela rainha.
Lacan, com seu estilo gongórico, barroco e teatral, não perdia a oportunidade de nos brindar com suas frases de efeito, enigmáticas, a tal ponto instigantes que algumas pessoas as consideraram um verdadeiro desaforo, no sentido de provocação. Entretanto, o termo desaforo pode tomar-se também no sentido jurídico de transferência de um foro para outro ou, na psicanálise, a passagem de uma instância psíquica a outra, consciente-inconsciente, foro interno e foro externo, a outra cena ou o obsceno.
1. Seguindo a trilha de Freud, Lacan anuncia solenemente: A mulher não existe. Não existe porque é socialmente invisível, seus direitos são pouco reconhecidos, e porque não há nos dicionários um significante que a defina, que faça delas um conjunto, visto estarem incluídas no significante masculino: o homem. O importante, neste aforismo, é o artigo definido (A), que universaliza. Em função do mito de Totem e tabu, no qual a exceção do pai da horda, que não foi castrado, confirma a regra geral da castração, não consta esta exceção no suposto grupo das mulheres, razão pela qual elas não formam um conjunto. A maioria dos homens afirma que não conseguem compreendê-las, isto é, apreendê-las juntas. Assim, ‘A mulher’ idealizada pelo homem, completa, castrada, sujeita, portanto, à lógica do significante, à lei, não se encontra em lugar algum. O que existe é uma mulher, uma de cada vez.
No Seminário 18, Lacan intitula dois capítulos (o oitavo e o nono) com títulos parecidos e totalmente diferentes: “O homem e a mulher e a lógica” e “Um homem e uma mulher e a psicanálise”. No primeiro, os artigos definidos, indicadores da universalidade, propõem um discurso filosófico, no registro da consciência lógica. No outro, os artigos indefinidos indicam a particularidade, própria do inconsciente, do um por um de uma ciência do particular.
2. As mulheres são loucas, mas não totalmente. Tal aforismo decorre de uma afirmação freudiana, no sentido de que o supereu das mulheres é menos rígido que o dos homens. Já que o supereu é herdeiro do Complexo de Édipo, e que a menina dirige seu impulso incestuoso ao pai, acontece que, sendo o pai sempre incerto, ao contrário da mãe, a interdição à filha é passível de contestação, permanecendo uma dúvida quanto à extensão da castração.
Com este mesmo raciocínio, Lacan acrescenta que, ao contrário do homem que é totalmente aprisionado pela lei, pelo simbólico, não havendo dúvida quanto à sua mãe que é certíssima, a lei é mais frouxa para a mulher. Relativamente livre do simbólico, a mulher tem acesso maior ao Real, à loucura. E quanto mais loucas, mais fascinam os homens, presos no cabresto da lógica. Já que não existe um significante que agrupe as mulheres, elas se sentem mais à vontade pra fabricarem seus próprios significados, falando mais, chorando com frequência, e fingindo sem cerimônia.
3. Não é louco quem quer. As mulheres podem colocar-se neste lugar da loucura, para desespero dos homens. Só quem pode ter acesso ao Real detém este poder. E Lacan acrescenta que a loucura é o limite da liberdade, porque o louco não depende tanto do outro.
Preso na lógica do simbólico, o homem não suporta e não entende as contradições da mulher que, quando diz ‘não’, quer dizer ‘sim’, e quando diz ‘sim’, fica no ‘talvez’.
Leandro Karnal faz o seguinte elogio à loucura: “Ser louco é a única possibilidade de ser sadio neste mundo doente”.
4. Amar é dar o que não se tem, a alguém que não o quer. Lacan molda esta frase com base no que é dito no Diálogo de Platão: “Ninguém pode ensinar o que não sabe”. No amor, sempre imaginário, acontece uma dialética metafórica entre o amante e o amado, em torno de uma falta simbólica.
O que é o amante? É aquele que, sentindo que algo lhe falta, mesmo sem saber o que seja, supõe em outro, o amado, algo que o completaria. O amado, por sua vez, sentindo-se escolhido, supõe que tem algo a dar, sem saber bem o quê. Mas, como o amado é também um ser falante e faltante, algo também lhe falta, como ao amante. Assim, o que ambos têm a dar é um nada, um vazio. E aquilo que o amado supõe ter para dar, não é o que falta ao amante. O amante não sabe o que lhe falta, o amado não sabe o que tem, um não-saber que é do inconsciente.
Quanto ao amor, nada mais discordante, como dizem Freud e Lacan. O primeiro afirma que o amor é narcísico; para Lacan, "basta que se esteja nele, basta amar, para ser presa desta hiância, dessa discórdia". Este é o modelo de amor proposto na transferência analítica. Não dar nada aí significa abster-se de qualquer juízo de valor.
5. Peço-te que me recuses o que te ofereço, pois não é isso. Esta frase é o título do capítulo VI do Seminário 19. Já que os amantes nada têm a oferecer, visto estarem marcados pelo vazio da castração, então, quando um oferece algo, isto não corresponde ao desejo do outro. Para ‘ser’ o falo, é preciso ‘não tê-lo’.
6. Penso onde não sou, e sou onde não penso. Esta é a contrapartida que Lacan propõe ao cogito cartesiano. Na situação analítica, quando alguém pensa, está no registro da consciência, não está associando; é só quando não pensa que o inconsciente se abre e surge a verdade do sujeito.
7. Não há relação sexual. Apesar da inegável importância da sexualidade no psiquismo humano, no sentido de Eros, Freud quase não faz referência à relação sexual e, muito menos, ao orgasmo, que não são conceitos psicanalíticos, pertencentes mais à sexologia biológica. O conceito de relação é utilizado por Freud com o adjetivo ‘objetal’. Depois de descrever uma fase do autoerotismo, outra do narcisismo, vem o momento da relação objetal, que se segue à interdição do incesto. A chamada relação de objeto, que começa com o surgimento da linguagem, não inclui ainda a relação sexual, e se resume na relação de linguagem. Somente na fase genital, na adolescência, é que as relações genitais podem acontecer. Mesmo a partir daí, pouco interessa a performance sexual. O que importa é a fantasia e o desejo inconsciente que promove a sexualidade. Na descrição do complexo de Édipo no menino e na menina, ainda há uma referência à heterossexualidade, mas quando Freud propõe uma fase ‘fálica’, já não há referência a algum órgão, com a desconstrução da relação via sexo.
Convidado a se pronunciar sobre a ‘relação de objeto’ Lacan decidiu fazer um ano inteiro de seminários sobre o tema, defendendo a tese de que não há ‘relação de objeto’, para indicar que esta relação, que existe concretamente, não é uma relação que satisfaz, porque os objetos são sempre parciais, sempre substitutos de um objeto total perdido para sempre.
Para melhor entender este aforismo, é bom voltar à Linguística e ao uso que dela fez Lacan. Saussure havia priorizado o significado (conceito) em detrimento do Significante (imagem acústica), colocado abaixo da barra, em segundo plano, portanto. Lacan inverteu esta ordem, priorizando o Significante, a linguagem e o Simbólico, mais na ordem da lógica aristotélica, agora em detrimento do significado, que é imaginário, platônico. O motivo desta inversão é mostrar que o imaginário é comum aos animais e ao ser humano, enquanto que o Simbólico é nosso apanágio exclusivo, aquilo que nos constitui como sujeitos humanos, deixando-nos a milhares de quilômetros de distância dos demais seres vivos. Priorizar o Simbólico não implica em abolir o Imaginário, o narcisismo, a relação especular, a relação incestuosa, mas admitir a presença de uma lei que funda a cultura e regula a sociedade.
Portanto, ao dizer que ‘não há relação sexual’, ele não nega que, de fato, as pessoas se relacionam sexualmente, mas que não é a relação sexual que nos outorga o estatuto de sujeitos humanos, visto que os animais também fazem sexo. Esta relação via sexo é da ordem dos sentidos, do prazer, do Imaginário. Mas a relação que garante nosso apanágio exclusivo de humanos é a relação com a linguagem, que surge na criança muito antes da fase genital, a partir do momento em que ela entra no registro do Simbólico. Assim, os seres humanos não se dividem em dois sexos, mas em dois gozos. Aos homens e às mulheres cabe o gozo fálico, decorrente da linguagem, enquanto que as mulheres têm também o gozo feminino, que escapa do Simbólico e roça no Real.
O mitológico Tirésias já havia assegurado que, em sua fase de Teresa, experimentou o outro gozo que, em seu cálculo, era sete vezes maior que o do homem.
No Seminário XIX (pág. 234), Lacan afirma que a verdadeira relação humana se faz com palavras: “o corpo do ser só se faz ser pela fala”. E no Seminário XI (pág. 157), diz: “por enquanto, eu não estou trepando, eu lhes falo, muito bem!, eu posso ter a mesma satisfação que teria se eu estivesse trepando”. No parágrafo que antecede estas citações, Lacan falava de sublimação: “Freud nos diz que a sublimação é também satisfação da pulsão”.
“Não há relação sexual” significa, então, que, se a colocássemos como o que nos define, seríamos como os animais. Dando primazia à “relação com a fala”, somos bem mais que animais. O cógito psicanalítico pode ser: “Eu falo, logo, sou sujeito do Inconsciente”.
Nosso grande poeta, ‘nascido há dez mil anos atrás’, já defendia o aforismo lacaniano, ao dizer: “Eu estou em você, mas você não está em mim”.
A sequência dos sete aforismos acima apresenta uma característica notável: todos eles incluem o advérbio ‘não’, que forma as frases negativas. Ao contrário da tradição filosófica em que as frases são afirmativas e, em geral, universais, porque veiculam uma sabedoria que abrange tudo o que se pode conhecer, numa completude imaginária, a psicanálise sempre inclui uma negação da totalidade, porque defende a castração que nos converte em seres de falta, de fala simbólica, em que a palavra denuncia uma ausência da coisa.
Esta sequência de ‘nãos’ poderia ser entendida como uma visão pessimista do ser humano? Não faltam os que defendem esta posição. A meu ver, nem Freud nem Lacan são pessimistas, mas realistas, com uma percepção do ser humano em toda a sua limitação. O destino da humanidade está atrelado aos ‘nãos’ que se dirigem às mães e a seus filhos: Não integrarás o teu produto; Não dormirás com tua mãe.
Além disso, não podemos esquecer que Freud vivenciou a tragédia da Primeira Guerra Mundial, e foi vítima da Segunda. Lacan vivenciou as duas Guerras Mundiais. Assim, ambos tinham argumentos suficientes para entender o alcance da pulsão destrutiva no ser humano. Não admira, portanto, que tenham escolhido o personagem Édipo como protótipo das tragédias humanas.
O Édipo retratado por Freud é diferente do Édipo lacaniano. Freud foca sua análise no Édipo épico, o Rei de Tebas, poderoso, no esplendor de sua virilidade, com quatro filhos de uma bela rainha, intérprete dos enigmas esfíngicos, que tinha sonhos eróticos incestuosos e era investigador dos próprios crimes. Freud tinha 43 anos quando publicou “A interpretação dos sonhos”, em que teorizou sobre o Complexo de Édipo. Identificou-se, portanto, com um Édipo ainda glorioso, um grande pai e detentor da lei. Freud sempre fora o preferido da mãe e tinha perdido seu pai três anos antes.
Lacan identifica-se mais como o Édipo de Colona, um Édipo decadente, condenado, cego, castrado, abandonado, caminhando em direção à morte, tendo como único consolo sua filha Antígona. Um Édipo que correspondia bem à descrição da tragédia grega: ‘seria melhor não ter nascido’. Lacan tinha 60 anos, quando escreveu o Seminário sobre a Ética da Psicanálise, baseado na história de Antígona, que não cedeu quanto ao próprio desejo. Neste seminário, ele explora a ‘filosofia’ do Marquês de Sade, estampado na capa do seminário, e proposto como ‘padroeiro dos psicanalistas’.
As histórias de Édipo e Antígona descrevem os conflitos entre a Moral e a Ética. A moral é a lei do poder, o discurso do mestre, que conflita com a ética do desejo inconsciente, o discurso do analista. E a lição que a psicanálise nos traz é que nossa tragédia não decorre de nossa impotência (imaginária), mas da impossibilidade de um Real que nos escapa. O falecido psicanalista Hélio Pellegrino já nos advertia de que “a condição humana não tem cura”.
A cultura, que não cessa de causar o mal-estar, nos oferece algumas alternativas para quem segue o desejo, cada uma com um destino diferente:
- a cultura grega aponta para um destino trágico, como no caso de Édipo;
- as religiões consideram o desejo como pecaminoso, punindo-o com o inferno;
- o budismo associa o desejo ao sofrimento, aconselhando sua abolição;
- a psicanálise nos convida a uma ética do desejo, a uma ética do bem-dizer (na análise), que não diz qual é o bem. E adverte que a única culpa que possamos ter é a de não seguirmos nosso próprio desejo.
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